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"Não me permitia chorar": Homens negros reconstroem a paternidade

Eduardo Claudino Chagas com a filha, Isabella Claudino Gomes, e o pai, Luiz Carlos Chagas - Arquivo pessoal
Eduardo Claudino Chagas com a filha, Isabella Claudino Gomes, e o pai, Luiz Carlos Chagas Imagem: Arquivo pessoal

Carmen Lúcia

Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro

17/09/2020 04h00

Pare para pensar: quantas pessoas do seu círculo de amizade foram criadas só pela mãe? E quantas nem ao menos possuem o nome do pai na certidão de nascimento? Pois só no primeiro semestre deste ano, 80.904 crianças foram registradas sem o nome do pai no Brasil. Muitas? Pois é, das crianças foram registradas sem o nome do pai no Brasil, no primeiro semestre de 2020.
Segundo dados da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), plataforma de dados administrada pela Arpen-Brasil, de janeiro a junho foram registrados 1.280.514 nascimentos de brasileiros em Cartórios de Registro Civil, em 6,31% deles consta apenas o nome da mãe.

Humberto Baltar e o filho apolo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Humberto Baltar e o filho apolo
Imagem: Arquivo pessoal

Para melhorar a realidade das famílias brasileiras e ajudar homens do país inteiro a se identificarem com a missão paterna, Humberto Baltar, pai do Apolo, de 1 ano e 5 meses, criou o coletivo Pais Pretos Presentes, que desde o ano passado acolhe homens que buscam aconselhamento, amparo e ajuda para lidar com dificuldades impostas pelo modelo de masculinidade, paternidade e afeto ditados pelo machismo estrutural.

"Na sociedade racista há um apagamento constante da sensibilidade, afeto e sentimentos do homem preto. Prevalece a narrativa de que não sentimos, não somos afetuosos com os nossos filhos e não nos importamos com o seu empoderamento racial. Diante disso, torna-se fundamental escrever uma contra narrativa que nos contemple. Por isso os relatos, experiências, fotos e vídeos que compartilhamos são tão importantes nesse sentido", diz ele.

O projeto conta hoje com mais de 32 mil membros espalhados pelo Brasil. "Discutimos masculinidades, paternidades, afeto, criação com apego, puerpério, menarca, cama compartilhada, guarda compartilhada, pensão alimentícia, empoderamento infantil e tudo relacionado às paternidades, masculinidades e a criação dos nossos filhos, entre outras pautas que os pais e mães trazem no dia a dia do coletivo. Para isso, realizamos debates sobre o que é ser pai, preto e presente, oferecemos assessoria jurídica, assistência psicológica, rodas de conversa das mães pretas e pais pretos, campanhas de promoção de afroempreendimentos dos nossos membros nas redes sociais, articulação de campanhas publicitárias com diversas marcas que nos procuram valorizando o empoderamento estético preto entre outras ações", explica Humberto.

Integrante do grupo, Kedison Geraldo Ferreira, 29, cresceu sem a presença do pai, morto quando ele tinha apenas 4 anos. O coletivo o ajudou a superar essa ausência e se sentir preparado para exercer a paternidade para a filha Stella de 3. "Na infância, essa ausência do meu pai era mais amena, mas, quando cheguei na adolescência e na vida adulta, passei a sentir falta de conversas e conselhos. Essa ausência se intensificou quando me tornei pai, achei estranho no inicio, pois passei a ficar me questionando como seria se tivesse tido uma referência masculina durante a minha criação. Por isso, meu maior medo era ser um pai ausente, pois sei o quanto isso dói para uma criança e para a mãe", compartilha Kedison.

Ele conta de que maneira a convivência com o coletivo o ajudou. "Comecei a participar de palestras e rodas de conversas. Entendi que é necessário, porque além de vivermos numa sociedade machista, também é racista e eurocêntrica. Através dessas ações que o coletivo promove, consegui lidar com minhas emoções, minha filha, esposa, com o próximo em geral".

A ideia de ser pai de uma menina em uma sociedade racista e machista foi um dos motivos que levou o jornalista Julio Cruz, 36, a entrar no grupo. E, segundo ele, que é pai de Tarsila, de 10 meses, a decisão foi a melhor que poderia ter tomado. "Acredito muito que o coletivo seja um lugar de aquilombamento, onde nós, homens pretos, estamos ali unidos em uma troca afetiva e pedagógica para ressingnificar o "ser preto" que mora em nós. Eu mesmo entrei no grupo durante o período de gestação da minha esposa, porque eu queria entender melhor a condição de pai de mulher preta, em uma sociedade extremamente racista com o povo preto, mas que é muito mais cruel com a mulher preta. Foi a melhor escolha que fiz. Tenho aprendido bastante", avalia.

Alexandre Cesar da Silva, com a filha, Ana Flávia 8 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Alexandre Cesar da Silva, com a filha, Ana Flávia 8 anos
Imagem: Arquivo pessoal

Já Alexandre Cesar da Silva, 39, conta que aprendeu cedo a ser o homem da casa com a separação dos pais. "A partir daquele momento, me senti na obrigação de assumir a casa, ser um pai para meus irmãos e dar um suporte para minha mãe, pois a ausência paterna ficou nítida. Precisei aprender cedo, na prática, a necessidade de lidar com as dificuldades do homem preto para sobreviver em nossa sociedade".

As consequências desse amadurecimento precoce acabaram sendo sentidas por Alexandre anos depois. Algo que só foi amenizado graças ao coletivo. "Acabei acreditando no mito de que a minha masculinidade não me permitia chorar na frente da minha esposa, relatar minhas dores ou ainda sentir a necessidade de transmitir uma imagem de rigidez e autoridade diante da educação da minha filha. O coletivo me oferece esse espaço de acolhimento".

O profissional de comunicação, que é pai da Ana Flavia, 8, acredita que o fato de um alto número de crianças serem criadas por mães solo reflete o fato de que muitos pais ausentes carregam esse mesmo histórico familiar. "Muitos deles também cresceram sem essa referência paterna ou tiveram pais autoritários e de quase nenhum afeto. São muitas crianças sem registro paterno, mas acredito que esse número aumenta quando olhamos para crianças que tem apenas o registro, mas não têm de fato um pai fazendo parte do seu desenvolvimento".

Well Padua, 28, alerta para a importância da não romantização da maternidade solo. "Acho muito triste quando romantizam essa situação dizendo que 'essa mãe é guerreira'. Minha mãe foi mãe solo com o meu irmão do meio e ela sempre fala o quanto foi difícil. Ela trabalhava e, por isso, tinha que deixar meu irmão na casa dos outros. Muitas vezes, as pessoas reclamavam do choro dele, ele teve que vender bala na rua, enfim. Não há romantismo nenhum aqui. É muito triste não ter com quem contar!", opina o pai do pequeno Nôah de Padua, de 1 ano.

Quando o assunto é medo ou até mesmo os motivos para acompanhar o trabalho do coletivo Pais Pretos Presentes, o consultor financeiro Eduardo Claudino Chagas, 38, e pai da Isabella, resume bem os anseios dele e dos outros pais que fizeram parte dessa reportagem: todos buscam ser referência para seus filhos.

"Minha filha não foi planejada, então foi um susto a descoberta da gravidez. O meu maior medo era não dar conta, decepcionar. Vejo a paternidade como algo divino e inspirador, privar uma criança desse convívio e não dividir essa responsabilidade com a mãe é de uma covardia sem igual", finaliza.