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Como portadores de doenças raras conseguem respiradores na pandemia

Carrinho levando respirador da menina Maria Cecília, 4, de Ribeirão Preto (SP) - Arquivo Pessoal
Carrinho levando respirador da menina Maria Cecília, 4, de Ribeirão Preto (SP) Imagem: Arquivo Pessoal

Rodrigo Bertolloto

De Ecoa, em São Paulo

31/05/2020 04h00

Um dos efeitos colaterais da atual pandemia é atrapalhar o cotidiano de portadores de síndromes raras. Eles e seus familiares viram respiradores artificiais, e outros aparelhos essenciais para a sobrevivência, desaparecerem do mercado ou subirem muito de preço. Isso aconteceu ainda que esses equipamentos não sejam os indicados para os contaminados por Covid-19.

Os ventiladores mecânicos usados por portadores de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), por exemplo, triplicaram de valor, embora eles não devam ser usados na pandemia, porque espalhariam o vírus do doente para o ambiente, por serem de sistema aberto. Mesmo assim, vários Estados e prefeituras encomendaram equivocadamente essas máquinas, e agora estão sendo investigados por superfaturamento e malversação de dinheiro público.

Nesse cenário de urgência e escassez, as associações de famílias dos pacientes se mobilizaram com ações na Justiça e por meio de empréstimos de equipamentos para que ninguém ficasse sem esses dispositivos vitais.

Lina Pádua e o marido, Fabio, que é portador de ELA, doença degenerativa que não tem cura - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lina Pádua e o marido, Fabio, que é portador de ELA, doença degenerativa que não tem cura
Imagem: Arquivo Pessoal

É o caso da Associação Pró-Cura do ELA, que emprestou todos seus 30 equipamentos, comprados antes da pandemia. Eles foram destinados para portadores que ainda esperam a chegada dos aparelhos requisitados por meio de pedidos judiciais.

"Agora está impossível. Os preços estão um absurdo. Com as autoridades, as pessoas comprando errado e o dólar lá em cima, estamos tendo muita dificuldade para achar os respiradores", afirma Lina Pádua, gerente da associação e mulher de um portador da doença que afeta o sistema nervoso de forma degenerativa e progressiva e acarreta em uma paralisia motora irreversível.

Cura pela Justiça

Uma das primeiras orientações que uma família com paciente de enfermidade rara recebe é exigir na Justiça que o Sistema Único de Saúde arque com equipamentos ou remédios necessários. A judicialização ocorre quando eles não estão disponíveis no SUS. A base legal para isso é a Constituição Nacional de 1988. Afinal, segundo ela, todo o brasileiro ou estrangeiro residente no país tem direito à saúde e à vida, e o Estado tem de garantir isso.

Para obter esse direito, a família deve comprovar que não tem renda para a compra. Um paradoxo é que, em geral, quem sabe dessa lei e entra no Judiciário são pessoas de camadas sociais de maior renda e estudo. Mas as organizações de familiares ajudam para que mais pessoas saibam e utilizem seus direitos.

"Nas cidades de São Paulo ou do Rio, você até consegue um respirador sem precisar entrar com uma ação. Pode demorar até um mês, mas chega. Mas, na maioria dos lugares, é preciso processar e esperar uns meses até obter o que se necessita", conta Pádua.

Isso aconteceu com a família da menina Maria Cecília, que descobriu em outubro último que ela era portadora da raríssima síndrome de Rohhad - há cerca 100 pessoas diagnosticadas no mundo todo. Essa doença genética associa obesidade rápida, hipoventilação e desregulação do sistema nervoso autônomo.

A família da menina de quatro anos de Ribeirão Preto (SP) foi orientada pelo próprio Hospital das Clínicas local a entrar na Justiça para contar com um aparelho de ventilação mecânica. Os pais abriram o processo em dezembro de 2019 e esperavam receber o equipamento no início do ano, mas a chegada do coronavírus ao país atrapalhou os planos.

"A máquina que valia R$ 45 mil passou para R$ 120 mil e sumiu dos sites e lojas. Só agora conseguiram um aparelho e vamos receber. Demorou o dobro do previsto", conta o tio da menina, Paulo Locce.

Agora, a luta da família é para ter um oxímetro, dispositivo que se prende ao dedo e mede o nível de oxigenação do sangue. Esse aparato também virou item de consumo no meio da pandemia, afinal, a redução de oxigênio é um dos sintomas de um contaminado por coronavírus. A questão é que esse teste é ineficiente como confirmação de contágio porque várias enfermidades têm o mesmo efeito de redução da presença de oxigênio na corrente sanguínea.

Estratégia de sobrevivência

Regina Próspero, presidente do Instituto Vidas Raras, teve de emprestar o oxímetro de seu filho para o de Fabiana Schimith. Gustavo, 17, pegou a Covid-19, ficou internado oito dias e só poderia sair do hospital se tivesse um oxímetro para monitorar sua condição. Como o preço desse artefato subiu de R$ 70 para R$ 500 nesses dias pandêmicos, o jeito foi pegar emprestado - ambos os filhos têm doenças metabólicas genéticas relacionadas a dificuldades respiratórias.

"Os comerciantes se aproveitam da situação. É muito desumano. Quem está apavorado com o coronavírus acaba consumindo informações desencontradas, vai atrás do oxímetro e prejudica quem mais precisa desses aparelhos", se queixa Schimith.

Próspero conta que além da pandemia, as constantes mudanças no Ministério da Saúde também prejudicaram - foram três ministros em um espaço de dois meses. "O recurso já estava alocado em março, e eu já tinha engatilhado com o ministério a importação do remédio para portadores de HPN [Hemoglobinúria Paroxística Noturna], mas houve tanta troca de servidores, que a compra não foi encaminhada", relata.

Se até metade de julho o medicamento não chegar ao Brasil, os doentes de HPN vão precisar de UTI, disputando as já escassas vagas com os infectados pelo novo coronavírus, que nos quadros mais agudos necessitam intubação de sistema fechado porque o pulmão está tomado por secreções.

Com países, Estados e cidades brigando por respiradores, essas pessoas que precisam deles ontem, hoje e amanhã acabam ficando no papel de elo frágil dessa corrente. Mas com união das famílias e a luta judicial conseguem diminuir o problema.

Pádua gosta de comparar ELA e Covid-19, para que as pessoas saibam mais sobre a doença que acometeu seu marido. "As duas não têm cura, tiram o ar, o abraço e isolam as pessoas. Só que no coronavírus é tudo muito rápido. Já no ELA, esse afastamento vem bem devagar até o último dia de vida", analisa.