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Por que naufrágios para criar corais em Noronha são risco ambiental

Espécie invasora, coral-sol é avistado em afundamento feito na costa do Recife (PE) - Projeto Conservação Recifal
Espécie invasora, coral-sol é avistado em afundamento feito na costa do Recife (PE) Imagem: Projeto Conservação Recifal

Carlos Madeiro

Colaboração para Ecoa, de Recife (PE)

11/03/2020 04h00

O anúncio de que navios serão afundados em Fernando de Noronha (PE) para criar corais artificiais e incentivar a prática de mergulho gerou preocupação na comunidade científica, que classifica a medida como um risco ao ecossistema local. Os naufrágios programados transformam as embarcações submersas em recifes artificiais, favorecendo o mergulho contemplativo.

A ideia foi anunciada pelo senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) e pelo presidente do Instituto Brasileiro do Turismo (Embratur), Gilson Machado Neto, em recente visita ao arquipélago, afirmando que seriam 16 pontos de naufrágios na costa. Eles também falaram sobre a liberação de chegada de cruzeiros no local.

Fernando de Noronha pertence ao estado de Pernambuco e é uma unidade de conservação ambiental. O governo pernambucano já se manifestou contrário às medidas anunciadas e diz que não foi procurada para debater o tema.

A medida faz parte de um pacote da Embratur, que anunciou em novembro de 2019 um o programa prevê o naufrágio de 1.200 equipamentos no litoral brasileiro, como embarcações, vagões, aeronaves, viaturas e estátuas.

Por conta do projeto, um grupo de 48 pesquisadores de diversas universidades e institutos publicaram uma carta afirmando que a bioinvasão do coral-sol facilitada pelos navios é uma das razões que novos naufrágios podem causar prejuízos ao Brasil.

Perigo das espécies invasoras

No caso de Fernando Noronha, os naufrágios são mais preocupantes, segundo cientistas ouvidos pelo Ecoa. O pesquisador Pedro Henrique Pereira, coordenador do Projeto Conservação Recifal, explica que esses afundamentos se tornam ainda mais perigosos por conta da geografia do arquipélago. "Por ser uma ilha, ela tem muito mais fragilidades, e se torna muito mais suscetível a espécies invasoras", explica.

Pereira coordenou estudos sobre os naufrágios feitos em anos passados na costa do Recife, capital pernambucana, e constatou a presença do coral-sol, uma espécie invasora que traz prejuízos ao ecossistema.

"O que acontece é que esses naufrágios acumulam espécies invasoras, até que chega um momento em que ela começa a invadir o ambiente natural", explica Marcelo Oliveira, pesquisador do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará (UFC).

"Até hoje a gente não encontrou em Noronha o coral-sol. Mas se for colocado naufrágio lá, existe um risco de funcionarem como um trampolim para que ele chegue ao ambiente natural. Aí, sim, é um grande problema", diz.

Recifes artificiais atraem vida marinha. Eles puxam essa vida do ambiente natural do recife para o navio, e isso desestabiliza o ecossistema natural. É diferente de você colocar um naufrágio numa região que só tem areia, por exemplo. No caso de Noronha, já temos recifes naturais na área.

Marcelo Oliveira, pesquisador do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Um dos pontos que também chama a atenção do pesquisador é que Noronha já tem área boa para mergulho. "Ali tem uma biodiversidade muito significativa. Sem contar que Fernando de Noronha está conectado por correntes com o Atol das Rocas [santuário ecológico em forma de anel localizado a 148 km], um dos ambientes mais preservados. Os impactos em Noronha, como são hoje o lixo ou os poluentes, impactam o Atol. Isso tem de ser avaliado com muito cuidado", diz.

Comunidade científica é contra

Ricardo Miranda, pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e coordenador do Projeto Ecológico de Longa Duração Costa dos Corais, diz que o anúncio de naufrágios em Noronha causou surpresa a quem está estudando os impactos das espécies invasoras.

"A comunidade científica de uma forma geral é radicalmente contra, e está todo mundo super preocupado com essa questão", diz.

Ele confirma que os naufrágios seriam uma "porta de entrada" para espécies invasoras, e cita não só o coral-sol, mas a possibilidade da vinda do peixe-leão — nativo do Oceano Pacífico, que se tornou a pior espécie invasora nos recifes de corais do Caribe, comendo invertebrados e larvas de outros peixes.

"É uma espécie que usa os naufrágios também como habitats. É mais preocupante ainda porque Noronha está mais próximo do Caribe, onde existe a ocorrência do peixe-leão. Então, é um ponto onde ele pode chegar pelas correntes marinhas", completa.

Administração soube pela imprensa

O administrador de Fernando de Noronha, Guilherme Rocha, afirmou ao Ecoa que não foi procurado pelo governo federal para debater o plano. "Soubemos disso pela imprensa", conta. Segundo ele, a comunidade está apreensiva com a notícia não só dos afundamentos, mas também com a possibilidade de retomada de cruzeiros no arquipélago.

Apesar de todos viverem do turismo, e de serem medidas que podem movimentar a economia, todos têm a consciência de que só vivem por conta da preservação do meio ambiente.

Guilherme Rocha, administrador de Fernando de Noronha

Rocha cobra que a liberação para esses eventuais naufrágios só seja dada após estudos detalhados sobre o impacto ambiental. Antes disso, defende, é preciso que Fernando de Noronha passe por uma série de obras. A ilha viu uma explosão do turismo nos últimos anos.

"A infraestrutura aqui precisa de obras. Precisamos trazer recursos para investir e ter saneamento para todo mundo, colocar água na casa de todo mundo. Depois disso a gente pensa se pode aumentar a oferta e estuda a capacidade turística", analisa.

Parte dos empresários apoia

Na contramão de cientistas, o afundamento de navios tem apoio de alguns donos de pousadas e hotéis de Noronha. "Sou super a favor. Temos visto de vários locais do mundo naufrágios que viram coral. Não acredito que exista dano ambiental nisso, tanto que é uma prática conhecida mundialmente que não tem danificado", diz Fabiana de Sanctis, proprietária do Dolphin Hotel, primeira e único com classificação de hotel no arquipélago.

Integrante da Associação de Pousadeiros de Fernando de Noronha, ela crê que a medida pode aumentar um perfil de turista que visita o arquipélago. "Além de um ponto de interesse, traz um público muito mais consciente. O público que mergulha é muito consciente da natureza, da conservação, senão ele perde o ponto principal dele."

Em nota enviada a Ecoa, a Embratur informou que o projeto de afundamento é visto como um agregador de fauna marinha e para a realização de mergulhos de contemplação. "Essas estruturas são utilizadas para o turismo náutico em diversos países do mundo e funcionam", escreve.

Sobre as questões ambientais, a empresa diz que o Ministério do Meio Ambiente tem competência para determinar a criação de recife artificial marinho, como vem fazendo desde 2002. Cita que houve nove naufrágios no estado de Pernambuco entre 2002 e 2013.

"No Plano Nacional de Recifes Artificiais da Secretaria de Ecoturismo, do MMA, foram realizados dois novos naufrágios na costa de Tamandaré (PE), monitorados pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e pelo Ministério do Meio Ambiente. Em breve, ambos os navios naufragados estarão aptos para pesquisas e atividades de mergulhos de contemplação", afirma o órgão.