Cientista psicodélico

Brasileiro lidera revolução psiquiátrica que promete resolver epidemia de saúde mental com psicodélicos

Giacomo Vicenzo do UOL, em São Paulo (SP)

Anos 2000, é noite no pico do Jaraguá, ponto mais alto de São Paulo (SP). Um estudante de biomedicina observa árvores que estranhamente respiram pelos troncos e movimentam seus caules como um tórax humano, em retração e expansão. Uma névoa envolve o corpo do observador, que partilha o mesmo ar espesso e esbranquiçado com os seres vegetais.

Longe de descobrir uma nova espécie ou fenda para um mundo invertido, a cena se passa na mente de Eduardo Schenberg, hoje com 43 anos, neurocientista e presidente do Instituto Phaneros. A lembrança faz parte de sua primeira experiência com ayahuasca.

"Foi uma coisa de comunhão com a natureza e com a vida. De sair e sentir a neblina da madrugada. Um deslumbramento de humildade, que vários tratariam apenas como algo religioso", diz Schenberg.

Sobrinho-neto de Mário Schenberg, considerado o maior físico teórico brasileiro, com carreira de destaque e homenageado por Gilberto Gil na canção "Oração pela Libertação da África do Sul", Eduardo diz que o que faz seguir no caminho do estudo de psicodélicos está mais no campo do mistério do que da matemática.

Até tomar, a gente não sabe que tem essa opção no menu da vida. Algumas comparações são os sonhos. É todo um universo e muito diferente de nossa vigília chamada realidade.

Mirando a ciência por trás das substâncias que produziam o efeito em sua mente, esse foi o cartão de embarque para uma longa carreira de estudos sobre como psicodélicos, nos quais se incluem a ayahuasca, podem ser usados em tratamentos clínicos de dependência química, depressão, ansiedade e outros problemas da mente.

Foto: Fernando Donasci / Arte UOL

Visões multicoloridas

Ayahuasca, uma bebida psicodélica de origem indígena feita a partir de duas plantas amazônicas, é usado em rituais de povos indígenas há centenas de anos.

A substância responsável pelos efeitos visuais após a ingestão da bebida faz parte de um dos princípios ativos da planta, o DMT (dimetiltriptamina).

Presente em cerca de 60 espécies de plantas, também há estudos que pesquisam sua presença e produção no próprio corpo humano, sendo semelhante à serotonina e à melatonina, duas substâncias que nosso organismo produz e são fundamentais para o bem-estar e a saúde mental.

Com a experiência na pele e a ideia na cabeça, Schenberg começou a estudar e a entender um pouco mais o processo de neurotransmissão do cérebro.

Em 2011 na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), ele se debruçou em uma pesquisa que analisava as ondas elétricas do cérebro de pessoas após ingestão de ayahuasca.

Uma hora depois do uso, as pessoas descrevem uma série de coisas multicoloridas, caleidoscópios, mandalas e criaturas místicas. Depois essa onda retorna ao normal e o que detectamos foi: as pessoas estavam num estado mais meditativo e reflexivo.

Alguns estudos sobre o potencial medicinal da ayahuasca continuam acontecendo e são promissores. Em 2021, pesquisadores brasileiros da USP de Ribeirão Preto (SP) publicaram um estudo no Journal of Clinical Psychopharmacology, em que demonstram que o ayahuasca pode ajudar pessoas com fobia social e com medo de falar em público, por exemplo. Após uso da planta, os pacientes apresentaram melhora da cognição e autopercepção.

Viagem ao caminho alternativo

A busca pela compreensão dos efeitos dos psicodélicos no cérebro levaram Schenberg ao Imperial College London, de Londres, entre 2014 e 2015, onde estudou por cerca de um ano neuroimagens referentes à atividade cerebral sob o efeito do LSD.

"Isso me fez migrar para a pesquisa clínica. Desde 2015 tenho me dedicado ao trabalho na psicoterapia assistida por psicodélicos", conta.

O campo de estudo envolve profissionais de diversas áreas e é voltado sobretudo para o tratamento da dependência química, transtornos pós-traumáticos e alcoolismo.

"Já existem remédios para esses tratamentos, mas uma parcela dos pacientes não consegue o resultado desejado ou tem muitos efeitos colaterais", diz Schenberg.

De volta ao Brasil, esse foi o horizonte almejado por sua instituição, o Instituto Phaneros, que pesquisa a Psicoterapia Assistida por Psicodélicos (PAP) usando o MDMA (que ficou popularmente conhecido como ecstasy) e a psilocibina (substância presente nos "cogumelos mágicos").

É importante lembrar que o uso psiquiátrico de substâncias psicodélicas acontece em situações terapêuticas com supervisão e indicação médica.

Esses estudos costumam excluir pacientes com distúrbios psiquiátricos graves, como transtorno bipolar e esquizofrenia, e pacientes com doenças cardiovasculares.

"Nada é 100% seguro, as pessoas podem ter surto psicótico, mas nunca aconteceu em meus estudos", afirma Schenberg.

Psicodélicos usados em tratamentos

  • MDMA

    Sintetizada, em 1912, pelo alemão Anton Köllisch com a intenção de ser usada em sessões de psicoterapia. O tenente Sarko Gergerian deve começar estudos para tratar transtornos pós-traumáticos em policiais em 2024, após aprovação da FDA (Food and Drug Administration, a Anvisa dos EUA).

  • LSD

    Bill Wilson, um dos criadores da comunidade internacional Alcoólicos Anônimos, que passou pelo vício do alcoolismo, conheceu o LSD em 1960. Ele propôs o uso da droga em substituição do álcool.

  • Psilocibina

    Os "cogumelos mágicos" contém psilocibina, uma substância alucinógena, clinicamente associada ao tratamento de distúrbios e transtornos psiquiátricos. Já foi usada por Eduardo Schenberg em sua "cirurgia psiquiátrica"

Cirurgia Psiquiátrica

Frente ao seu instituto, Schenberg mergulha em um caminho que une a pesquisa clínica e o oferecimento de cursos para profissionais da área médica.

Em 2017, conduziu a primeira pesquisa clínica no Brasil, usando na terapia a substância MDMA para o tratamento de transtorno de estresse pós-traumático ocasionado por abuso sexual.

De acordo com o neurocientista, foi possível observar uma melhora dos sintomas em pelo menos 2/3 dos voluntários que participaram da amostragem. O estudo foi publicado na íntegra em 2020 na Revista Brasileira de Psiquiatria e mostra também que houve melhora na cognição e mudanças emocionais nos pacientes.

O grande objetivo de Schenberg é criar o que chama de cirurgia psiquiátrica, uma analogia que usa para descrever o tratamento que almeja desenvolver com o uso de psicotrópicos.

"Por exemplo, se você tem um tumor, pode tratar com quimioterapia ou pode fazer cirurgia para remover aquelas células cancerígenas. A psiquiatria trabalha com a primeira opção, com remédios que irão mudar o funcionamento do cérebro, mas é um tratamento gradual e crônico", exemplifica Schenberg.

A segunda opção seria o tratamento que Schenberg desenvolve. Nele, o paciente é acompanhado por psicólogos, terapeutas e outros profissionais por cerca de seis a oito horas e pode receber de uma a três aplicações das substâncias psicodélicas.

"Isso lembra o contexto de uma cirurgia. A esperança é que com poucas sessões, ao longo de dois anos, se resolva uma depressão que não se consegue tratar com 10 ou 15 anos de remédio", diz o pesquisador.

Nos próximos dois anos, a expectativa do instituto é ampliar a pesquisa clínica para tratar 220 pacientes e treinar 150 profissionais, a maioria da área de psicologia, psiquiatria e psicanálise.

Mistério e respeito

Schenberg segue unindo ciência ocidental com conhecimentos indígenas, por meio de um projeto com o povo Huni Kuin, que vive no Acre: "Me uni a pesquisadores de neurociência na República Tcheca, que queriam estudar as ondas cerebrais durante um ritual indígena. Assim, conheci Bane, e nasceu uma amizade".

Bane (Leopardo Sales Yawa Bane Huni Kuin) é neto de um grande líder do povo Huni Kuin, que agora ajuda Schenberg a seguir sua trilha científica.

"Eduardo tem sido um amigo e irmão, é um grande colaborador na pesquisa científica da neurociência, mas também colabora no reconhecimento do valor cultural dos povos originários e participa de debates importantes sobre medicina da floresta", afirma.

Um artigo assinado por Schenberg com outros pesquisadores afirma que "é preciso respeitar o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas (...) - reconhecendo a ayahuasca como patrimônio cultural nacional, o que pode impedir o patenteamento por terceiros, favorecendo a medicina tradicional e acordos de repartição de benefícios obrigatórios(...)."

Para o cientista, a questão da ayahuasca é indissociável de questões políticas e de saúde.

"A partir do ano que vem, conjuntamente com eles [povo Huni Kuin] retomaremos o estudo. É um ganho inestimável para sociedade. Se não fossem as experiências pessoais com substâncias, eu não teria seguido esse caminho".

O meu encontro com a ayahuasca foi misterioso, mas migrei para outras substâncias por respeitar a cultura indígena. Quando comecei a ter contato com indígenas, tive experiências transformadoras. É complicado que algum cientista queira patentear essa substância para tratamentos psiquiátricos.

Eduardo Schenberg, neurocientista

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