População negra: a contradição de uma maioria ainda tratada como nicho
No Brasil, a lógica de investimento - pública e privada - para projetos de realizadores negros ou de temática negra é uma lógica de nicho. Assim são pensados, por exemplo, editais afirmativos ou mesmo a dinâmica de aporte direto para produtos audiovisuais de narrativa racializada. Ao mesmo tempo, o Censo atestou em 2010 que mais de 50% da população se autodeclarou negra. 54% para ser exata.
NICHO 54, instituto do qual sou co-fundadora, é uma organização que apoia a carreira de pessoas negras em posições de liderança criativa, intelectual e econômica na indústria audiovisual. Ele nasceu em 2019, em São Paulo, portanto, no primeiro ano de mandato do ex-presidente - aquele sem nome. Naquele momento, o retrocesso e o horror se tornaram palavras cotidianas e ficou explícito para a minha geração como a História cobra seu preço.
E a história da comunidade negra no país desde sempre foi empurrada para debaixo do tapete, sob o projeto de uma suposta democracia racial. Nascemos então com uma missão corajosa e absolutamente desafiadora: resistir ao retrocesso e produzir avanços concretos para a nossa comunidade, ao mesmo tempo. Depois de quatro anos vejo, no entanto, ainda muitos desafios.
O setor audiovisual vive uma crise que não é só racial, mas que se agrava quando trazemos esse recorte para a discussão. É a crise da qualificação. Todos os funcionários do setor estão defasados nesse quesito, mas os profissionais pretos sofrem mais na relação entre oportunidades e recursos para se qualificarem. O baixo investimento em formação por parte do poder público e das organizações de segundo e terceiro setores passa essa responsabilidade para o profissional que presta serviços na área. Esse peso não pode ser individual porque confirma, na prática, o quanto o audiovisual é elitista e excludente, é uma questão estrutural.
A crise da qualificação no audiovisual ficou mais evidente quando os streamings chegaram ao Brasil - a Netflix foi a primeira em 2011 - exigindo alta performance de entrega. Vendo o desafio de conseguir profissionais com qualificação técnica e criativa disponíveis no mercado, a empresa desenvolve processos formativos para suprir a demanda de projetos pontuais e do próprio setor.
E a promoção da diversidade no mercado criativo, que deveria só gerar impacto positivo, acrescenta mais um ponto de fricção nesse cenário, já que passa a demandar mais dos profissionais pretos - que precisam ser hiper qualificados, mesmo sem nunca terem recebido um terço da possibilidade de se qualificar.
Esse fenômeno leva a outros efeitos como o adoecimento dessas pessoas, que querem aproveitar o boom de oportunidades para estabelecerem suas carreiras.
A solução do NICHO é apostar na qualificação e autoestima de profissionais e esse foco passa por entender que esse trabalho é de longa duração, que devemos ter métricas de acompanhamento de performance e, acima de tudo, que precisamos de investimento humano, foco na pessoa e não no produto final que ela pode gerar. Entre muitas coisas, contribuímos para aumentar a conscientização sobre a desigualdade racial e de gênero e, ao mesmo tempo, qualificamos os criadores e produtores que serão absorvidos pelo setor. Pela sua ousadia e complexidade, o trabalho que fazemos precisa de suporte e uma rede ampla comprometida com a sua continuidade. O nome do instituto é uma provocação a essa realidade imposta e questiona como o nosso mercado pode tratar como nicho uma comunidade que tem imenso potencial de consumo.
Dentre os programas do NICHO 54, destaco o programa de mentoria de carreira NICHO Executiva. Ele existe porque no Brasil existem de 3 a 5 mulheres negras produtoras que reúnem capacidade técnica e acesso para, efetivamente, produzir uma obra cinematográfica, seja documentário ou ficção - um dado extraído da observação do campo. A matemática é pornográfica se levarmos em consideração o tamanho da população negra do país.
Por fim, se supostamente existe uma democracia racial, como podem as criações negras serem "de nicho"? E encerrando, aproveito para fazer uma pergunta franca a todos vocês: quem está disposto a apoiar as organizações que qualificam e elevam talentos diversificados?
Fernanda Lomba é nascida e baseada em São Paulo. Atua na intersecção entre produção, criação, qualificação profissional e políticas do setor audiovisual. Com experiência em análise de mercado e curadoria de projetos, tem contribuições com festivais e mercados no Exterior, como Jurada do Doc-in-progress do Festival Cannes Doc ( 2023) e triagem de projetos brasileiros para Firelight Media (2022). Como produtora assina 5 documentários longa-metragem para Cinema, 2 obras seriadas de documentário para TV e 2 curtas-metragens. É co-fundadora e atual diretora do NICHO 54.
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