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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Petróleo salvou as baleias? Antes, óleo do animal era usado até em armas

Baleia jubarte - iStock
Baleia jubarte Imagem: iStock

Beatriz Mattiuzzo*

Colaboração para Ecoa, em Ilha Grande (RJ)

30/01/2023 06h00

Imagine se, para andar de carro ou simplesmente ter iluminação em casa à noite, você precisasse queimar um pouco de óleo de baleia. Parece loucura? Mas poderia ter acontecido em uma realidade (nem tão) alternativa.

Muitos de nós ignoramos o fato de que o mundo ocidental já foi dependente do óleo de baleia. Em romances famosos, como "Moby Dick" e nos filmes inspirados na temática, como "No Coração do Mar", ficamos tão absortos no dilema homem versus animal que frequentemente ignoramos o motivo da perseguição: a caça às baleias não se dava pela carne para a alimentação, mas sim pelo óleo retirado da gordura desses grandes mamíferos.

Era esse óleo que queimava e mantinha as ruas iluminadas em grandes cidades. Nos séculos 18 e 19, o óleo de baleia era responsável pela manutenção de faróis marítimos acesos até lubrificar armas, relógios, máquinas de costura e máquinas de escrever.

Nas palavras do historiador Eric Jay Dolin, "o óleo de baleia foi usado para lubrificar as engrenagens da Revolução Industrial".

Detalhe do quadro Pesca à Baleia, óleo sobre tela, no Museu Histórico Nacional - Detalhe do quadro Pesca à Baleia, óleo sobre tela, no Museu Histórico Nacional - Detalhe do quadro Pesca à Baleia, óleo sobre tela, no Museu Histórico Nacional
Brasil também foi um importante entreposto baleeiro
Imagem: Detalhe do quadro Pesca à Baleia, óleo sobre tela, no Museu Histórico Nacional

Quase acabamos com diversas espécies de baleias, mas após esforços internacionais para banir a caça na década de 1960, a população de ao menos algumas das espécies vem mostrando crescimentos expressivos. Seria correto dizer então que foi o fortalecimento da indústria de óleo e gás que contribuiu para o abandono e substituição do óleo das baleias?

A ideia de que "o petróleo salvou as baleias" passou a ser bastante divulgada e virou até um jargão na língua inglesa entre economistas.

Nessa visão, o surgimento de produtos petrolíferos em meados do século 19 reduziu o preço do óleo de baleia, levando ao declínio da indústria e assim, poupando os gigantes das profundezas da caça até a extinção.

Acontece que essa afirmação não se verifica se olhamos os dados históricos. O querosene foi criado em 1854, grandes depósitos de petróleo nos EUA foram descobertos em 1861. Então a partir daí era de se esperar que a captura e consumo de óleo de baleia fossem diminuir, certo? Mas, não foi isso que aconteceu.

No começo, a caça comercial era feita com navios à vela, barcos a remo e arpões lançados à mão - do mesmo modo como povos tradicionais a praticaram por séculos.

Como resultados apenas algumas espécies de baleias foram caçadas, as mais lentas e que boiavam já mortas. Quase nenhuma das espécies mais velozes, como as baleias azuis, foi capturada antes do final do século 19. Não existia tecnologia baleeira para isso.

Com os combustíveis fósseis e a Revolução Industrial, muitas tecnologias foram melhoradas, entre elas, a de caça: navios a vapor, arpões pressurizados, navios mecanizados para processar as baleias em alto mar.

O petróleo não salvou as baleias, assim como o óleo fóssil não substitui o seu óleo. O que aconteceu é que o óleo de baleia passou a ser adicionado a um repertório crescente de produtos. Na verdade, foi a caça às baleias moderna e industrializada do século 20 que as colocou em perigo.

O gráfico mostra o total de cachalotes caçados de 1800 a 1980; espécie era um dos focos da caça às baleias. Ao lado, um cachalote, que na verdade é uma espécie de golfinho porém tem o porte de uma baleia, podendo chegar até 18 metros de comprimento - Reprodução - Reprodução
O gráfico mostra o total de cachalotes caçados de 1800 a 1980; espécie era um dos focos da caça às baleias.
Imagem: Reprodução

O maior cuidado a ser tomado nessa percepção de que "o petróleo salvou as baleias" tem mais a ver com o futuro do que ao passado: a ideia de que problemas ligados à exploração do planeta, aparentemente sem solução, como os principais desafios ambientais que enfrentamos hoje, serão magicamente resolvidos por novas tecnologias. Não é verdade.

O ponto aqui é não é tornar a tecnologia heroína ou vilã da história, mas uma questão de lógica E a lógica dita o consumo dos recursos naturais em nome do lucro.

No fim, se não queremos acabar feito as baleias temos que encarar a emergência climática com seriedade, sem esperar soluções mágicas. Lembrando que o crescimento econômico e tecnológico sempre trará mais impactos à natureza - a diferença é quem paga a conta.

*Beatriz Mattiuzzo é oceanógrafa, mestranda em Práticas de Desenvolvimento Sustentável, instrutora de mergulho e cofundadora da Marulho, negócio socioambiental que intercepta redes de pesca junto a pescadores locais em Angra dos Reis. A Marulho foi a vencedora da categoria Empresas que Mudam do Prêmio Ecoa 2021.