Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Plano bioenergético na Amazônia pode gerar trabalho escravo e nova pandemia

O ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite ao lado do presidente Jair Bolsonaro - Antonio Molina /Fotoarena/Folhapress
O ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite ao lado do presidente Jair Bolsonaro Imagem: Antonio Molina /Fotoarena/Folhapress

Lucas Ferrante*

18/11/2022 06h00

Uma das propostas do Brasil para redução das mudanças climáticas apresentadas na COP27, que ocorre no Egito, é o plano bioenergético brasileiro. Apresentada pelo Ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, a proposta defende a formação de fundos para financiar a bioenergia brasileira como uma das medidas que supostamente reduziria a crise energética global, ao mesmo tempo que contribuiria para frear as mudanças climáticas. Entretanto, periódicos científicos como as revistas Science e Nature, consideradas os dois maiores periódicos científicos do mundo, já apontaram que a expansão do setor de biocombustíveis, principalmente na Amazônia, agrava as mudanças climáticas devido a formação de novos ciclos de desmatamento que aumentam a emissão de carbono.

Parte do projeto de bioenergia brasileiro esteve sob supervisão do vice-presidente da república, Hamilton Mourão, que se encontrou com representantes do setor sucroenergético em 20 de agosto de 2020, onde um dos temas do encontro foi o programa Renova Bio, que tem grande potencial para estimular um novo e enorme ciclo de desmatamento na Amazônia.

Uma das primeiras ações do governo Bolsonaro para expansão do programa bioenergético brasileiro foi a promulgação de um decreto em 2019, assinado pelo presidente da República Jair Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes (Economia), e Tereza Cristina (Agricultura), liberando cultivos de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal. Entretanto, como apontado na revista Science, a Amazônia está no seu limite de desmatamento tolerado e vastas áreas de plantio de cana-de-açúcar poderiam colapsar serviços ecossistêmicos prestados pela Amazônia que são fundamentais para o Brasil, como a formação e transporte de vapor d'água que é responsável por cerca de 30% a 40% das chuvas das regiões Sul e Sudeste do Brasil, os chamados "rios voadores". Desta forma, o decreto afetaria o país de maneiras sem precedentes, causando danos até à agricultura brasileira, além de vincular o setor bioenergético ao desmatamento da Amazônia.

Na ocasião, acionei o Ministério Público Federal embasando uma ação contra o decreto, com base em publicações científicas que coordenei e haviam sido publicadas na Science, na Nature e em outros periódicos científicos, demonstrando a inviabilidade do projeto e os danos ambientais, sociais e econômicos que trazia. Devido ao caráter nocivo do decreto, que foi comprovado tecnicamente em publicações científicas, o Ministério Público Federal acatou a denuncia e a judicialização derrubou o decreto do presidente da República e ministros que liberava plantios de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal.
Embora esta ameaça específica tenha sido contida, os planos por trás do setor bioenergético para a Amazônia são muito mais nefastos.

Em artigo científico publicado no periódico Regional Environmental Change, apontamos que uma das empresas instaladas na região para esse fim, a Millenium Bioenergy, tem visado "parcerias" com comunidades indígenas e outras comunidades locais para implementação de plantações de milho que substituiriam a cana-de-açúcar na produção de biocombustíveis. De acordo com um dos responsáveis da parte ambiental da empresa, que foi entrevistado para o estudo, ouça a entrevista na integra aqui, a Millenium pretende explorar as terras indígenas e demais comunidades sem remunerar o moradores e, em contrapartida, ela fomentará uma ração animal produzida com o bagaço do milho usado para produção de biocombustível, que alimentará criações de peixes, aves, porcos e bois confirmados, que serão criados pelas comunidades para que a Millenium exporte os produtos para Estados Unidos e países da Ásia e da Europa.

Este modo de exploração dos povos tradicionais é análogo à escravidão por não remunerar adequadamente os trabalhadores. Os mecanismos legislativos que impediam tal pratica e fortaleciam a fiscalização de trabalho escravo e análogo à escravidão no Brasil, foram sucateados propositalmente pelo governo do ex-presidente Temer e depois pelo governo do presidente Bolsonaro. Iniciativas similares de outras empresas com o mesmo modo de produção e parceria com comunidades tradicionais no estado do Pará, demandaram intervenção do Ministério Público, pois os agricultores de comunidades tradicionais que aderiram a este modo de produção contraíram dívidas de mais de 20 anos para serem pagas e tiveram um retorno mensal que não era suficiente para a subsistência das famílias.

O estudo publicado no periódico Regional Environmental Change também apontou que a degradação ambiental destas áreas pela expansão dos plantios de monoculturas para a produção de biocombustíveis, somada à criação de porcos e aves em confinamento, pode gerar novas pandemias devido a saltos zoonóticos. Saltos zoonóticos são infecções causadas por bactérias, fungos, parasitas, príons e vírus que estão estocados naturalmente na natureza e podem se espalhar para os humanos por meio do contato direto ou através de alimentos, água ou meio ambiente. Um exemplo de um salto zoonótico, é a pandemia de covid-19, causada por um beta-coronavírus naturalmente presente em morcegos na região de Wuhan, na China, e que se transferiu para humanos através do contato propiciado pela degradação ambiental e pelas criações de animais na região. Estudos recentes publicados pela Academia Brasileira de Ciências e pelo periódico Science Advances, corroboram o estudo, apontando que o avanço da degradação da Amazônia pode gerar uma nova pandemia.

Enquanto os planos de empresas do setor bioenergético visam a região Amazônica em detrimento do meio ambiente, colocando toda a população em risco, o lobby do setor avança na COP27 sendo promovido por integrantes do governo federal. Exemplo deste lobby foram as falas do ministro do Meio Ambiente às quais me referi no início deste texto, além do fato de a ex-secretária de Meio Ambiente Beatriz Milliet ser anunciada como palestrante no painel sobre "perspectivas para a bioenergia no Brasil", organizado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente durante a COP27, mas estar representando oficialmente a Copersucar, uma empresa do ramo bioenergético. Funcionários de alto escalão do governo devem respeitar um período de "quarentena" entre o trabalho público e privado, para evitar conflitos de interesses, o que não foi seguido.

Como já apontado pela revista Science, não podemos nos deixar enganar pelo doce sabor e tentação da expansão de biocombustíveis na região amazônica, pois as consequências disso afetariam toda a sociedade. Preocupantemente, o presidente e CEO da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), Evandro Gussi, que defendeu a abertura da Amazônia a plantios de cana-de-açúcar, está inserido no governo de transição do presidente Lula.

Em meio a este lobby, é crucial que o governo de transição e o novo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, se posicionem contra estas cadeias e produção na Amazônia, efetivando mais medidas de zoneamento ecológico e econômico para preservar a Amazônia e evitar uma nova catástrofe anunciada.

*Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestre e doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Entre suas diversas linhas de pesquisa, tem pesquisado o impacto de plantações de biocombustíveis sobre a estrutura de florestas, da biodiversidade e de serviços ecossistêmicos, sendo o pesquisador responsável pela denuncia e pelo embasamento da ação que derrubou o decreto que liberava o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal.