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REPORTAGEM

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Quanto custa discriminar?

20/11/2020 - Manifestação em frente à loja do Carrefour em Curitiba (PR) - Luis Pedruco/Futura Press/Estadão Conteúdo
20/11/2020 - Manifestação em frente à loja do Carrefour em Curitiba (PR) Imagem: Luis Pedruco/Futura Press/Estadão Conteúdo
Cláudia Werneck

23/11/2020 04h00

Dinheiro e dor. A inclusão é um fluxo sistêmico. Toda vez que uma pessoa ou instituição age de modo discriminatório, bloqueando direitos, o sistema inteiro é atacado. E para. Aconteceu esta semana, após o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, considerado uma violência por racismo estrutural. De imediato, a indignação petrificou as pessoas; e ainda que rapidamente tenham reagido, esta imobilidade reflete ou é reflexo de uma devastação maior. No assassinato tem ilegalidade, injustiça e vergonha. Com ele, o Estado se empobreceu muito - ainda que esta contabilidade nunca tenha sido feita.

Permitam que eu faça algumas perguntas antes de continuar. Vocês são gente? Se sentem como gente? Se percebem como gente? Acredito que sim. Todas as pessoas que acessam o conteúdo deste artigo agora, lendo ou ouvindo por meio de recursos de acessibilidade, são legitimamente humanas e têm idêntico valor humano.

A espécie homo sapiens é não binária por natureza - em relação a qualquer diferença. A aterrissagem humana no planeta é duplamente desordenada. Inicialmente, porque nunca nasceu ou nascerá alguém igual a alguém, uma assimetria que segue em expansão ao longo da vida por conta de estímulos e insumos familiares, econômicos, culturais, entre outros. Mas, além da humanidade ser formada por seres totalmente diferentes entre si, de que modo nascem? Embaralhados, sem qualquer ordem lógica no desembarque. Não há filas prioritárias. Não há ordem ou cronologia decifrada pela ciência.

O valor humano dos humanos vem das nossas diferenças infinitas, e não nas nossas semelhanças finitas. Uma vez que sob qualquer ângulo a manifestação da humanidade é um caos, toda tentativa de se atribuir valores humanos e sociais distintos a pessoas e grupos irá fracassar, mais cedo ou mais tarde - não sem antes enviesar planejamentos estratégicos, orçamentos públicos e privados em diversas áreas, especificamente na educação. A escola inclusiva pode ser o berço que embala e acolhe uma sociedade inclusiva - ou não. Isto depende de que modo a União conduz e destina recursos às suas políticas.

É impossível organizar o infinito em um número finito de combinações inspiradas em modos seculares de rejeição mútua por religião, gênero, cor, raça, deficiência ou território. Mas a sociedade tenta. Está acostumada a considerar, por exemplo, que uma criança com deficiência intelectual, ainda que tratada com muito amor, vale menos para o futuro de sua família, comunidade e nação do que uma outra criança considerada muito inteligente.

Julgar a humanidade de seres humanos para em seguida lhes atribuir valores mais ou menos humanos é uma prática muito perigosa porque nos habilita e conforta para realizar, sem refletir, outras escolhas de exclusão, que começam pequenas, ficam médias e depois grandes. A exclusão e a discriminação são conceitos próximos. Levados às últimas consequências, matam. A morte pode ser com sangue ou sem sangue.

Como controlar este impulso incontrolável de organizar a humanidade em categorias que aprisionam a própria humanidade? Esta talvez seja a principal herança recebida de nossas famílias, que nos fizeram acreditar que sim, que é possível hierarquizar condições humanas associando-lhes a distintos valores humanos e dando-lhes notas, como se estivéssemos o tempo todo numa eterna prova de matemática e precisando de muitos pontos para passar de ano.

Este equivocado hábito de julgar a humanidade alheia tem passado de geração em geração. A discriminação não se dá apenas quando atribuímos "notas baixas" à alguém; "notas altas" também são excludentes e tiram aquela pessoa do único lugar seguro na sociedade: o lugar de sujeito de todo e qualquer direito. Rotular pessoas com deficiência de "especiais" é um bom modelo dessa discriminação disfarçada de mérito. Há exemplos típicos de situações similares em outros campos. São elogios ou palavras de amor que embrulham "pra presente" o baixo ou nenhum compromisso em se praticar, diariamente, o não-racismo, a não-misoginia ou o não-etarismo, entre outros exemplos.

Discriminar custa dor e dinheiro, e impacta destrutivamente tanto quem discrimina quanto quem é discriminado. Ninguém acorda inclusivo ou não inclusivo. Tudo exige esforço diário, para o bem ou para o mal. Nós já sabemos quanto custa discriminar. Agora precisamos urgentemente saber quanto custa não discriminar, expandindo os critérios binários e dicotomizados que regem a elaboração de orçamentos públicos e privados. Um objetivo seria saber quanto custa aos cofres públicos o impacto do racismo estrutural, por exemplo. Ou da separação de estudantes com e sem deficiência desde a educação infantil, como propõe a nova Política de Educação Especial, um retrocesso. Qual será a economicidade de se praticar um empenho coletivo e público de não mais se discriminar por qualquer diferença ou desigualdade? Dividir tudo em dois lados, me parece, nunca vai dar certo. Os dois lados nem existem. A humanidade é não binária. Inclusão é viver na infinitude do meio.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.