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REPORTAGEM

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Nove mil famílias de produtores rurais paulistas perguntam: e agora?

Andrew Toshio Hayama, Biko Rodrigues, Cristina Adams e Márcio Santilli

31/08/2020 04h00

O governador de São Paulo, João Dória (PSDB), enviou no dia 13 de agosto à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei 529/2020, que "estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas", cuja função primordial, desenhada já nos dois primeiros artigos, é extinguir.

Extinguir a Fundação Parque Zoológico de São Paulo. Extinguir a Fundação para o Remédio Popular. Extinguir a Fundação Oncocentro de São Paulo. E assim por diante, em uma lista tão extensa quanto difícil de ser avaliada, que, estranhamente, inclui estruturas voltadas à saúde pública, em plena pandemia.

Nessa lista de órgãos ameaçados de extinção está a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo "José Gomes da Silva", o Itesp, que atende cerca de 9 mil famílias de produtores rurais em todo o Estado.

A proposta de extinção do Itesp não passou por consulta à sociedade, não trouxe estudos ou propostas de como ações seriam realocadas e contratos cumpridos, não apresentou estudos sobre a economia que, em tese, o Estado faria ao eliminar o órgão, e não trouxe previsão de continuidade de suas atividades, como a assistência técnica rural. Além disso, não menciona, em nenhum momento, seu impacto sobre as comunidades quilombolas atendidas pelo instituição, e muito menos segue os parâmetros de consulta livre, prévia e informada, previstos na Convenção OIT 169, da qual o Brasil é signatário, numa afronta aos direitos dos povos e comunidades tradicionais.

Com a assistência técnica rural, o Itesp auxiliou, em 2019, produtores rurais paulistas a comercializarem mais de R$ 310 milhões. E, durante a pandemia, a Secretaria da Justiça e o Itesp viabilizaram a compra de alimentos produzidos por cooperativas, assentamentos e quilombos para distribuição de 10 mil cestas para comunidades vulneráveis no Estado. Trabalho no campo e comida na mesa para quem mais precisa, em um esforço para mitigar os impactos econômicos da Covid-19.

Entre os produtores rurais estão as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, no sudoeste do Estado, para quem, além da assistência técnica, o órgão executa política pública de reconhecimento e regularização fundiária quilombola, entre outros projetos, como o Microbacias II, executado entre 2011 e 2018 com um histórico de realizações na região.

Vale frisar, o Itesp é o único órgão do Estado que assessora comunidades quilombolas, com papel central para a segurança territorial e alimentar, viabilizando o manejo tradicional das roças de coivara, reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Extinguir o Itesp, portanto, afeta diretamente a qualidade de vida dessas famílias negras, justamente quando o mundo afirma que Black Lives Matter. E justamente quando há uma pandemia que atinge duramente comunidades tradicionais.

Se a questão é fazer um ajuste fiscal pelo equilíbrio das contas públicas, o custo do Itesp é de exíguos 0,03% do orçamento do governo estadual. O drama será sentido no campo e na mesa das famílias paulistas durante a pandemia e também no pós-pandemia.

O órgão gerencia programas essenciais para o bom funcionamento do Estado, e que serão imprescindíveis para a retomada da economia, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa Paulista da Agricultura de Interesse Social e o Programa de Aquisição de Alimentos.

Não há dúvidas de que a extinção do Itesp trará impactos negativos significativos e imediatos para quem depende, direta ou indiretamente, dessas políticas. Estamos falando de uma cadeia produtiva que começa no campo, com o produtor rural, e chega à merenda escolar. O alimento é também conteúdo para a educação.

Desassistir cerca de 9 mil famílias de produtores rurais e paralisar a regularização fundiária de 78 mil propriedades gerará insegurança jurídica, afetará a segurança alimentar da população e aumentará a necessidade de auxílios emergenciais. Ao mesmo tempo a extinção do órgão, na forma proposta, também pode gerar ações judiciais por descumprimentos de contratos e parcerias em vigência.

O Itesp, além disso, gere 34 mil hectares de vegetação preservada ou em processo de recuperação. São áreas custeadas em 70% com recursos privados captados pelo próprio órgão que compõem a reserva legal de assentamentos, essenciais para preservação da fauna e da flora no Estado.

Assim, o Itesp também contribui de forma decisiva para cumprir com a Estratégia para o Desenvolvimento Sustentável do Estado, nos termos do Decreto Estadual nº 58.107/2012, bem como no combate às mudanças climáticas, bem como com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas.

Ou seja, em vez de extinto, o Itesp precisa ser fortalecido com práticas de gestão mais eficientes, modernas e participativas. É fundamental viabilizar planejamento da ação em longo prazo, com metas, prazos e objetivos factíveis.

Ações ainda mais efetivas devem trazer retorno à sociedade, o que inclui a sustentabilidade financeira da própria estrutura do Estado.

Desestruturar não é sinônimo de eficiência. A ciência e a prudência recomendam que ações dessa natureza estejam fundamentadas em estudos. E que esses estudos possam ser submetidos ao escrutínio da sociedade. As 9 mil famílias de produtores rurais atendidas pelo Itesp perguntam: e agora? Agora, dizemos nós, o Projeto de Lei 529/2020 precisa ser revisado.

Andrew Toshio Hayama é defensor público estadual, membro do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (NUDDIR) e mestre em Direito Socioambiental

Biko Rodrigues é do quilombo Ivaporunduva (Eldorado/SP), coordenador da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)

Cristina Adams é professora associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

Márcio Santilli é sócio-fundador do Instituto Socioambiental

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.