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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Por políticas públicas que ampliem histórias

Vinicius Lima é cofundador do SP Invisível - Arquivo pessoal
Vinicius Lima é cofundador do SP Invisível Imagem: Arquivo pessoal

Vinícius Lima*

02/01/2020 07h00

Eu ouço histórias por toda cidade de São Paulo. Histórias de pessoas que ninguém vê, com suas vozes que ninguém escuta. Ouço histórias de homens e mulheres, em sua maioria, negros e negras, que foram esquecidos e rejeitados pelas suas famílias, seus empregos e pela sociedade. Há cinco anos, ouço histórias de pessoas em situação de rua e as conto no SP Invisível, numa tentativa diária e lenta de humanizar o olhar da população por meio de histórias dos invisíveis da capital.

Sempre que falo sobre o SP Invisível em alguma entrevista, uma questão é sempre muito recorrente. Todos os jornalistas perguntam, tanto para mim quanto para o André Soler, amigo e cofundador do projeto, "qual é a história que mais nos marcou?"

Essa pergunta nos acompanha desde o primeiro ano do projeto, em 2014.

São muitas. Ao todo, ouvimos quase mil histórias de pessoas nas ruas. Triste pensar isso, pois há cidades com centenas de vidas nas calçadas e nós não ouvimos nem 5% dessas histórias, mesmo com muitas entrevistas. No início, eu procurava encontrar um relato, uma pessoa ou uma situação que tenham me marcado, falava sobre histórias em que conseguimos alguma mobilização após o encontro, como foi o caso do Jorge que ganhou óculos, do Geraldino que ganhou uma cirurgia ou do Bruno que voltou para casa.

Mesmo com esses resultados, as histórias não eram, de fato, as que mais me marcaram. Não contamos histórias para que "algo aconteça". Se acontecer, é o desdobramento desse relato. Contamos histórias para que as pessoas se vejam nelas.

Então, me refaço essa pergunta: "Qual é, de fato, a história que mais me marcou?"

A história que mais me marcou é aquela em que me vejo nela, seja por algum sonho em comum, seja por alguma experiência vivida ou por características como nossa fisionomia, nossa idade ou nosso gênero. Nessas horas, me lembro dos privilégios e oportunidades que tive ao longo da vida. Quantas vezes não ouvi histórias em que a pessoa me disse que após perder o pai ficou sem chão, sem apoio e foi para a rua? Eu também perdi meu pai quando era criança, mas tive o privilégio de ter uma família e amigos que me mantiveram, tanto financeira quanto afetivamente. As semelhanças são várias e os afetos nos conectam.

As histórias quebram com todos os estereótipos jogados nos invisíveis das ruas, como "noia", "ladrão", "cracudo" ou "mendigo" e escancaram a humanidade das calçadas, mostram como o ódio é vazio e falhamos numa missão simples: enxergar a nós mesmos na vida do outro.

Então, a questão que me faço é: como faremos algo pela cidade se mal conseguimos enxergá-la? Como faremos algo pela cidade se não conseguimos ouvi-la? Como faremos algo se não nos vemos nos invisíveis da cidade e não sentimos as dores deles?

Tudo que é feito para a cidade deve ser feito para potencializar as histórias das pessoas e trazer autonomia para os invisíveis, não para gerar apenas novos usuários de políticas públicas e para controlar os talentos, os afetos e as vontades. Para isso, precisamos mudar o nosso olhar e parar de enxergar em bloco — mas enxergar pessoas. Não são todos iguais e nem tem que ser, cada um pode somar com o todo, de uma maneira diferente.

Por exemplo: todos os alunos de uma escola não devem ser iguais, cada um tem um talento, um sonho e é bom em uma matéria, por mais que a institucionalidade e os processos de entrada na universidade tentem padronizá-los e colocá-los numa forma. Uma escola de qualidade é aquela que encontra maneiras de despertar em cada aluno o que há de melhor nele, uma escola que empodera os seus alunos, não que os reprima.

Assim é (ou deveria ser) com os invisíveis das ruas. As políticas públicas não podem ser feitas para controlar, domesticar ou suprimir as autonomias dessa população, como um albergue, onde todos são números, um do lado do outro. Como dormir desse jeito?

As políticas públicas para a população de rua têm que ser como quartos: com paredes, com portas, com privacidade. Num quarto, as pessoas podem ser elas mesmas, podem colocar seus quadrinhos na parede, suas plantinhas e colocar a roupa de cama que bem entenderem.

As pessoas precisam se ver nas políticas públicas, que por sua vez devem potencializar as histórias e ampliar vozes! Políticas que deem quartos e privacidade, não apenas uma cama ao lado da outra. São políticas que ofereçam um emprego na área que a pessoa consiga atuar, não apenas como atendente de um restaurante. Políticas que ecoam as vozes, não que calam os gritos.

As pessoas em situação de rua têm histórias, têm afetos e vivências. Não nasceram nas ruas. Essa história deve ser respeitada e pode ser aproveitada, tanto numa escola quanto num albergue, num presídio, numa ONG ou por toda a cidade. Para fazermos algo pela cidade, devemos ouvir suas histórias, nos vermos nessas histórias e ampliá-las para que mais pessoas se vejam nelas.

Pessoas não se veem em números ou resultados, pessoas se veem em histórias.

* Vinícius Lima é cofundador do SP invisível, jornalista e conta histórias para humanizar olhares e conectar pessoas.