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Notícias da Floresta

REPORTAGEM

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#LutoIndígena6: No Amazonas, jovens do povo Tukano buscam resgatar tradição

Indígena Tukano na região do Rio Apaporis, na fronteira entre Brasil e Colômbia.  - Mauricio Romero Mendoza/CC BY-NC-ND 2.0."
Indígena Tukano na região do Rio Apaporis, na fronteira entre Brasil e Colômbia. Imagem: Mauricio Romero Mendoza/CC BY-NC-ND 2.0."

29/06/2021 06h00

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A Terra Indígena Alto Rio Negro está encravada no noroeste do Amazonas, entre a fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, na região conhecida como "Cabeça do Cachorro", pelo formato no mapa.

É uma das mais populosas terras indígenas do país, com mais de 26 mil pessoas de 23 etnias diferentes. É lá que nasceu Francisco Sarmento Tukano, que deixou sua região para estudar e hoje, após se tornar mestre, está finalizando o seu doutorado em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB).

A pandemia atravessou a tese de Francisco, que passou um ano em sua terra natal, mas foi impedido de conversar com os anciãos e anciãs, fundamentais para a sua pesquisa. "Muitos, inclusive, acabaram morrendo. São saberes que se perdem para sempre. Este tempo está muito difícil para nós", relata Francisco Tukano.

Já enfrentando duramente as questões climáticas, seu povo, assim como outros da região, está espalhado por diversas aldeias, rios e comunidades. "E a pandemia veio de todos os lugares. Da capital, Manaus. De invasores. Mesmo se retirando para locais mais afastados dentro do mato, não foi possível evitar. A covid-19 abateu não só o povo Tukano como vários outros", conta.

Em uma região em que a maioria da população é indígena, cerca de 90% dos habitantes, também não houve registros detalhados sobre quais etnias foram afetadas, de quais aldeias. Um levantamento negligenciado pelo poder público que ficou a cargo de organizações indígenas como a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e a Apib.

Francisco explica que o seu povo é mais um que sofreu a influência de missões salesianas católicas no passado e hoje de igrejas evangélicas. Ainda assim, a busca por preservar as tradições permanece.

Os rituais envolvem a preparação do corpo, que é mantido dentro de uma canoa. Nela, são colocados pertences pessoais e objetos como flechas e plumagens. Depois a pessoa é enterrada dentro de casa. Um xamã comanda a cerimônia, que envolve o uso de fumo. O objetivo é que o morto se despeça adequadamente deste mundo e retorne para o local de onde veio, dentro da cosmogonia Tukano.

Hoje, no entanto, é comum que a pessoa não seja enterrada nesse caixão-canoa e dentro de casa, mas em um cemitério padrão, por influência dos religiosos cristãos. Com a covid, além das pressões externas, a doença em si ameaça o cotidiano indígena, que é de compartilhar a comida, os utensílios e os momentos em geral.

Da vida em comunidade até o enterro, a covid muda tudo. "Para nós é muito difícil essa questão. Tentamos manter um distanciamento mínimo e realizar os nossos rituais com o máximo de segurança. Mas a realidade é bem complicada", relata Francisco Tukano.

No caso dos Tukano, segundo ele, o mais duro é a despedida. A mulher não poder abraçar o marido, o filho não pode chorar a perda do pai. Os rituais tradicionais, explica, podem até serem feitos depois do enterro, sem a presença do corpo. O que não pode é que o ritual deixe de acontecer.

Os Tukano também apostaram no conhecimento tradicional das ervas medicinais para se proteger da covid. "Sem essa proteção e sem os rituais que fizemos, sem dúvida a situação seria pior", acredita Francisco.

Durante décadas os missionários forçaram o povo Tukano a abandonar as suas práticas tradicionais, relata, de acordo com o que os seus pais e avós lhe contaram. Dos chás e rituais até o enterro, o cristianismo influenciou tudo. "Esse foi um período muito triste e duro para nós. Muitos anciãos nossos morreram entristecidos com isso", diz.

Hoje, porém, os jovens estão resgatando as tradições, valorizando a história e buscando aprender com o passado para evitar os mesmos erros e fortalecer os conhecimentos ancestrais do povo Tukano.

"Nós estamos procurando saber como era. Entendemos que aquilo não era ruim, era bonito, era nosso. Se ficamos órfãos de tradição é porque deixamos acontecer. E hoje nós queremos praticar e viver de novo as nossas raízes", diz Francisco, de 33 anos, que acredita que a tradição e o orgulho indígena, resgatado pelas novas gerações, está vencendo a morte e as proibições cristãs.

Entre o genocídio, a ignorância, a violência, o descaso do poder público e as ameaças registradas, as experiências indígenas mostram que a auto-organização dos povos e a ancestralidade foram o caminho encontrado para sobreviver à pandemia.

Uma realidade mesmo antes da covid-19 aparecer e que guia as práticas históricas dos povos diante da experiência em enfrentar o mal, invisível ou não. E que, segundo as fontes entrevistas, continuarão a guiar o seu exercício diário de celebração da vida.

(Por Mauricio Angelo )

Esta reportagem foi financiada pelo COVID-19 Emergency Fund for Journalists, da National Geographic Society e faz parte da série #LutoIndígena publicada em seis partes na coluna Notícias da Floresta.

Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.