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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Transversais' rompe a narrativa comum de pessoas trans e fala de esperança

Cena do documentário "Transversais" - Divulgação
Cena do documentário "Transversais" Imagem: Divulgação

25/04/2022 10h57

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O documentário nacional "Transversais" chegou aos cinemas em fevereiro deste ano, mesmo após tentativas de silenciamento do, ainda, presidente. O curioso é que o filme aborda a transgeneridade de uma ótica bem diferente desta de ataque contra a sua exibição. A produção desmonta a violência que não estava no script — mesmo que não seja nenhuma surpresa.

As histórias contadas no longa demonstram vivências de plenitude apesar dos desafios. O documentário venceu a barreira da censura também ao ganhar vida nas telas no país, chegando em março na Netflix.

O filme acompanha a vida de cinco pessoas que possuem em comum a identificação enquanto pessoas trans. E, apesar de trazer as barreiras e enfrentamentos na sociedade para ser quem sempre foram, as experiências relatadas dão ao documentário o tom de esperança.

Não são essas histórias que estamos acostumados a ler, ver ou vivenciar no país em que nossa expectativa de vida é de apenas 35 anos. Mas Caio José, Erikah, Samilla, Kaio Lemos, e Mara (mulher cis mãe de uma adolescente trans chamada Lara) nos mostram, nessa uma hora e meia de filme, que o acolhimento, seja de qualquer rede de apoio, transforma a vida de todes, permitindo que sonhos se tornem uma possibilidade real para as nossas vivências.

É por este motivo que fiz questão de trazer duas pessoas protagonistas deste documentário para contar sobre a importância dessa narrativa sobre as nossas vidas. Conversei com o Caio José e com a Erikah para evidenciar esse marco que é mais que um filme sobre a representação das suas próprias existências, mas vários retratos sobre as infinitas possibilidades de afeto e futuro para a população trans.

Caio José no documentário "Transversais" - Juno Braga e Linga Acacio - Juno Braga e Linga Acacio
Caio José no documentário "Transversais"
Imagem: Juno Braga e Linga Acacio

Muito solícito à minha abordagem, Caio José se apresentou a partir de suas próprias palavras: "eu sou enfermeiro, mestrando, sou professor. Estou na luta das pessoas trans aqui no Ceará desde 2015, onde eu e mais quatro homens fundamos a primeira associação transmasculina do Ceará. Tivemos muitas lutas ao longo do caminho, pois infelizmente ainda não temos um lugar de acolhimento de saúde correto".

Noah Scheffel - Quando você foi convidado para participar da produção, qual foi o principal motivador para que você compartilhasse a sua vivência para ser vista por todos?

Caio José - Eu já tinha feito outra produção com o Emerson Maranhão e o Kaio Lemos. Fizemos primeiro o curta "Aqueles Dois". Aí, veio o convite para fazer "Transversais" como uma forma mais profunda e ampla para falar sobre o tema. Eu me motivei a participar, porque temos que falar sobre a vivência trans e isso é uma forma de mostrar nossas vidas e perspectivas.

Você acredita que representar a possibilidade de viver, no país que mais mata a população trans, faz a diferença para as novas gerações que têm se entendido desta forma?

Caio José - Acredito que ao mostrar as vivências trans nos colocamos aos olhares centrais da sociedade e possibilita a retirada dessa temática dos locais underground. As novas gerações irão visualizar a diversidade da transcendência, que as pessoas trans fazem, como algo normal e digno de respeito.

O acolhimento da sua família é contado por você no longa como uma fortaleza. O que você diria para famílias que estão (re)conhecendo as suas crianças, como pessoas trans?

Caio José - O que falo para essas famílias e comunidade é que a marginalização é a pior opressão, pois nos isola das perspectivas de crescimento profissional, social e individual. Precisamos apoiar e principalmente respeitar, pois o amor é a chave para a evolução do ser. Sem minha família eu não seria ninguém. Seria mais uma estatística.

Erikah Alcântara no documentário "Transversais" - Divulgação - Divulgação
Erikah Alcântara no documentário "Transversais"
Imagem: Divulgação

Erikah Alcântara é doutoranda em Ensino de Matemática pela UFRJ, mestra em Ensino pela UFERSA e professora de matemática de redes públicas municipais de ensino do Ceará.

Ao abordá-la, já o fiz com uma grande admiração - que qualquer pessoa que assistiu ao filme também sentiria. E em tudo que ela trouxe, e que aqui compartilho com vocês, pude encontrar perspectivas de união que às vezes nos faltam.

Noah Scheffel - Acredito que para todas as pessoas que já assistiram à produção, um dos pontos mais emocionantes foi quando você contou como a sua mãe te pegou chegando em casa e vendo pela primeira vez você sendo quem você sempre foi. A gente sabe que para a maioria das pessoas trans não é isso que acontece. Você contou esse fato percebendo que o acolhimento de quem a gente ama pode fazer a diferença entre a narrativa binária de "vida ou morte"?

Erikah Alcântara - Acredito que a recepção e o acolhimento positivo naquele momento foram libertadores! Ouvir e perceber, de quem convivemos, situações que nos fortalecem como sujeites é muito empoderador e, com certeza, vai fazer toda a modificação na mediação dos conflitos que poderão vir a surgir durante todo o processo de transição. Evidente que isso vai ser diretamente refletido na forma como essa abordagem acontecerá.

Você fala muito sobre como esse elo com sua família, em especial com sua mãe, faz com que você siga a sua vida, vivendo também através da existência dela. Acredita que sua vida teria sido diferente se a reação dela ao te reconhecer, tivesse sido outra?

Erikah Alcântara - Minha mãe era formidável! Amo demais ela. Mas se por acaso a resposta para essa ação fosse negativa, com certeza eu buscaria alternativas para tentar reverter. Mas minha existência não seria silenciada. Deixo explícito que estou falando de mim, Erikah, sobre o meu comportamento e atitude, porém cada pessoa tem uma visão subjetiva e de acordo com a sua realidade sobre.

O que você vislumbra ou deseja como um futuro possível para as pessoas trans?

Erikah Alcântara - Visualizo um futuro de muito acolhimento positivo, de acesso a todas as políticas públicas que nos são negadas cotidianamente e uma revolução que terá o nome: TRANS!

"Transversais" é uma produção cearense, nordestina, brasileira, que tem chegado aos festivais do mundo contando histórias reais de esperança. Um filme que precisa ser visto por todas as pessoas, mas principalmente aquelas que ainda conhecem apenas os relatos trágicos da existência trans.

Um recado importante à sociedade de que a felicidade também é um direito nosso, e um recado potente para nós, pessoas trans, que ainda há muito futuro para se viver.