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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você tem medo das pessoas trans? Ou elas têm medo de você?

O casal Guto e Onika no clipe "Forever Young", de Liniker - Divulgação
O casal Guto e Onika no clipe "Forever Young", de Liniker Imagem: Divulgação

03/01/2022 06h00

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Se você me acompanha por aqui, sabe que eu sou uma pessoa trans, ou seja, eu não me identifiquei com o gênero que me foi atribuído no nascimento. Uma coisa importante a salientar aqui é que genital de nascimento não define gênero e, mesmo em 2022, ano em que imaginávamos que já teríamos carros voadores, estamos conversando sobre a identidade de gênero de uma pessoa não ter absolutamente nenhuma relação com qualquer parte do corpo dela. Mas tudo bem, afinal, janeiro é o Mês da Visibilidade Trans no Brasil, e é compartilhando esse tipo de conhecimento que a gente avança para uma sociedade em que as pessoas trans e travestis estejam presentes com acesso à segurança, saúde física e emocional, moradia, emprego e tantas outras questões que, mesmo pautadas como direitos humanos, ainda não são direitos trans.

Justamente por conta desta luta por direitos que celebramos nesta data. Em 2004, mobilizações de grupos articulados por travestis e transexuais foram ao congresso realizar uma manifestação para trazer visibilidade das barreiras encontradas pela nossa população na sociedade da época. E apesar de termos tido alguns direitos conquistados por lei, como retificação de nome em cartório, atendimento médico mais humanizado e com menos restrições de acesso, uso de nome social respeitado, no dia a dia de uma pessoa trans e travesti, a prática é bem diferente que a teoria.

Isso se dá muito por conta do preconceito que as pessoas têm com relação às pessoas trans e travestis. Quer ver só? Eu gostaria que você pausasse a leitura e imaginasse uma mulher trans. Agora, gostaria que você tirasse 2 minutos do seu imaginário para percorrer junto com essa mulher trans um dia da vida dela. O quão próximo da sua vivência enquanto pessoa cis esse dia estava? O quanto de violência ou marginalização você imaginou? Esta pessoa estava em locais que você, enquanto pessoa cis, costuma frequentar? E o mais importante de tudo, ela estava junto contigo, ou em algum momento, você se imaginou tendo contato ou até mesmo uma relação com ela?

O imaginário social com relação às pessoas trans as coloca em locais que transpõem a imaginação e agem de forma a transformar essas vivências em realidade. E muito disso vem do preconceito que carregamos e do medo que sentimos. Se você é uma pessoa cis, mesmo que conviva com pessoas trans, vai concordar comigo: você tem, ou já teve medo, de pessoas trans e travestis.

Eu sei disso porque eu também já tive medo da transgeneridade. De um aspecto diferente, pois eu neguei ela em mim por muito tempo, porque tudo que eu conseguia saber sobre o que é ser uma pessoa trans na sociedade era exatamente a mesma coisa que você imaginou: uma vida negada de afeto da família, um contexto diário composto por agressões físicas ou verbais, violências de várias naturezas, desemprego, e uma morte precoce. Esse imaginário social foi aquilo que moldou, a partir do privilégio cis de ditar como as estruturas de poder se articulam, como é a vida de uma pessoa trans ou travesti no nosso país. E esse imaginário foi muito baseado no medo que vocês têm de nós. E antes que esse medo de vocês transpareça, vocês o transferem para nós, com tentativas até mesmo não planejadas de nos jogar de volta para aquele local de distanciamento e marginalização que você imaginou.

Gostaria de trazer aqui para vocês assistirem um vídeo produzido e protagonizado por pessoas trans e travestis, que transmite exatamente isso que estou falando. Esse vídeo foi produzido pela Athos, pela produtora FAUNA, e roteirizado por Luh Maza, uma das principais roteiristas trans do nosso país. Conta ainda com a participação de Guto e Onika, um casal real e trans, e narra a história de um dia de vida deles ao som da música "Forever Young", da banda Alphaville, porém cantada em uma versão inédita pela cantora trans Liniker.

Esse vídeo, por mais tocante que seja, demonstra que assim como vocês, nós somos pessoas cheias de sonhos. Pessoas com famílias que construímos a partir das nossas conexões de acolhimento e segurança. Somos pessoas inteligentes e capazes de estarmos em ambientes escolares e no mercado de trabalho, protagonizando qualquer carreira que quisermos seguir. Pessoas que querem estar em locais sem sentir medo por sermos quem somos.

Nestes ambientes, onde você não costuma nos ver hoje, se você passar a ver, nós jamais seremos uma ameaça a ti. Nós não estamos tentando tirar nada de você. Não é sobre você. É sobre nós também termos acesso ao que já deveria ser nosso por direito. Porque os direitos humanos são para todos os humanos, inclusive aqueles que são trans e travestis.