Topo

Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A televisão na mesa da sala

Getty Images
Imagem: Getty Images

29/03/2021 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Existe uma prática nas redes sociais que diz "vocês não estão preparados para essa discussão", logo depois da exposição de um ponto de vista ainda polêmico. E nesta sociedade polarizada que vivemos, onde existe apenas o certo e o errado, a verdade e a mentira, qualquer coisa que fuja desse padrão se torna o único ponto de encontro dessas oposições: a invalidação da ideia que questiona a própria polarização. "O inimigo do meu inimigo é meu amigo", e ai de quem diga que não é assim!

Mas a questão hoje é, mesmo sabendo que eu vá transpor a regra da dualidade, chegar naquele lugar do ninguém está preparado para discussão. Quero convidar vocês a, antes de reagir de forma negacionista e correr para o outro lado do campo, repensar esse meio do caminho. Enquanto você corre.

Peço que façam um exercício e fiquem parados no meio do campo, abertos para discutir aquilo que é dado como tabu por um lado e como "mimimi" pelo outro. Parem no meio do caminho da polarização e se encontrem, ali, unidos — antes mesmo de saber qual é a ameaça. E se surgir a necessidade de apontar um inimigo e você não conseguir lidar com o desconforto de estar num mesmo espaço que o outro lado sem agredi-lo, pode apontar o dedo para mim. Mas não abandone o exercício! E continue no meio do campo, pois você está, sim, preparado para essa discussão, mesmo que seu dedo esteja direcionado ao meu rosto. Combinados?

Ok. Então, vamos lá: a construção social do papel de gênero do homem é nociva para todas as pessoas.

Agora talvez muitos baixem as mãos apontadas, não como um sinal de concordância, mas como um sinal de não entendimento. Explico: gênero é visto na sociedade atual como uma dualidade: existe o homem e existe a mulher, mas também existe como eles devem se comportar, qual é o seu papel.

Dentro deste contexto, a pauta é sobre como o papel de gênero do homem reflete em toda a sociedade, porque este ainda é o gênero dominante.

Todas as pessoas são atingidas pelo papel de gênero que o homem precisa desempenhar na nossa sociedade. A masculinidade tóxica é um conceito que trata justamente do quanto é necessário desconstruir o papel a ser desempenhado pelo indivíduo lido como homem. Aquele papel que reforça a dualidade de existências e o apagamento de alternativas. Que diz que o menino precisa crescer tendo várias namoradinhas, que o adolescente precisa ter relações com várias jovens sem deixar que qualquer sentimento aflore, além do sexual. Que, durante todas as suas experiências, ainda precisa escutar o famoso "engole o choro que homem não chora".

Aí, quando se vê adulto, seu retrato não é o que ele construiu por si só, mas aquilo que lhe foi construído: o cara que desrespeita outros gêneros em encontros com amigos, que fala mais alto dentro de casa com a esposa, que diz que é o único que os filhos respeitam. Aquele que agride, enquanto o detentor do poder na sociedade, quando na verdade, tudo isso é reflexo do medo.

E medo gera mais medo. Desde o medo que o então menino suprimiu quando não pôde sentir. Até o medo que o adolescente enfrentou quando queria sentir. O medo de não poder chorar. Tudo que o fez ser quem ele não é ou era, mas sim uma cópia daquele outro cara ali do trabalho, daquele amigo do futebol, ou do barbeiro da esquina. Essa toxicidade formou um coletivo de um mesmo personagem que apaga quem o próprio indivíduo é — ou que poderia ter sido.

E a opressão por não poder ser quem se é, afeta a si, e afeta qualquer pessoa que questione essa realidade. Talvez isso tenha te afetado a ponto de você ter voltado a apontar o dedo para mim. Pois afinal, quem é você para além daquilo que te mandaram ser?

O papel de gênero e a masculinidade tóxica começam por esmagar o indivíduo que está no topo da pirâmide do controle. Só que esse controle se torna descontrole, e esse descontrole vira uma reação em cadeia na qual todo o sistema é esmagado e as demais existências, pressionadas com um peso cada vez maior. E principalmente conforme formos explorando outras formas de existir que não seja essa masculinidade.

A desconstrução dessa reação em cadeia só é possível quando entendermos que não existirá nenhum tipo de igualdade de gênero enquanto aquele que domina as relações na sociedade também estiver sofrendo. E não, isso não é uma justificativa. É uma realidade. Os homens também estão sofrendo por uma estrutura que foi inventada por eles mesmos e com as quais não conseguem romper.

Eu comprei uma televisão para colocar na parede. Deixei-a ali, repousando sobre a mesa da sala e questionando o meu papel de gênero toda vez que eu queria sentar e percebia que não tinha espaço.

O meu papel de gênero me disse que eu devia colocar a televisão na parede. Assim como me disse que eu deveria ter uma furadeira e uma caixa de ferramentas. Como me disse para dar um soco em qualquer coisa que estivesse na minha frente toda vez que algo me desagradasse, e para gritar a plenos pulmões que eu não lavo a louça. Assim como me fez ensinar para as minhas filhas qual a garrafa de cerveja que elas devem me trazer quando eu mandar.

Homens, eu lhes pergunto: é confortável eu dizer para vocês que tenho medo de furadeira e que cogitei pedir ao vizinho para furar a parede por mim? O quanto diminuído você se sentiria se fosse você a pedir? E quanto superior você se sentiria se fosse algum outro homem pedindo a você?

Vê? A toxicidade existe nas nossas relações de poder e essa dinâmica faz com que as nossas demais relações sejam todas prejudicadas por exercer o papel de alguém que não somos, mas que acreditamos que precisemos ser.

Que possamos todos abaixar os dedos, relaxar os punhos, abaixar a voz, saber onde fica a esponja da louça, deixar de rir das brincadeiras ofensivas que nem graça tem. Que possamos nos olhar enquanto seres exclusivos, individuais, e mais do que aquilo que nos disseram que éramos.

Não somos, nem devemos ser resumidos a uma simples reprodução desse modelo nocivo para nós, e em consequência para todos. Que possamos encarar os incômodos nas nossas existências também. Que aqui, parados no meio do campo, possamos esquecer de que lado viemos, mas nos questionemos por que mesmo estávamos correndo.

Até porque eu não aguento mais passar o dia com o punho cerrado, a noite engolindo o choro no travesseiro e o tempo todo disputando o espaço da masculinidade com a televisão na mesa da sala.