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M.M. Izidoro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jordan Peele e a eterna tentativa de nos domar através do trauma

Cartaz promocional de "Não! Não Olhe!" - Reprodução
Cartaz promocional de 'Não! Não Olhe!' Imagem: Reprodução

M.M. Izidoro

Colunista do UOL

27/08/2022 06h00

Essa semana estreou nos cinemas brasileiros o filme "Não! Não Olhe!", terceiro filme do cineasta norte-americano Jordan Peele.

Eu, com minha carreira prévia como diretor de cinema, fico até com uma inveja do que o Peele fez até aqui na sua carreira. Ele é um dos poucos diretores que conseguiu que seus três primeiros filmes arrecadassem mais de 100 milhões de dólares na bilheteria americana.

Também está performando com sua técnica de diretor em um nível que muitos diretores com décadas de carreira nem sonham em performar. Esse filme novo mesmo é de um esplendor visual e sonoro dos filmes do auge da carreira do Steven Spielberg — e ele está só no terceiro filme!

Mas tem uma outra faceta que me atrai e me fascina muito.

Peele pode fazer filmes de terror, mas como o homem preto e norte-americano que é, ele sempre deixa bem claro que os grandes vilões dos seus filmes são o trauma causado pela simples experiência de ser preto em uma sociedade como a nossa.

Isso tudo que transforma qualquer obra de Jordan Peele em um espetáculo (que inclusive é um dos assuntos principais do filme novo), pois ele consegue fazer tudo que faz como um homem preto, que era ator de comédia de televisão e que agora é um dos cineastas mais importantes do cinema moderno, que consegue dialogar não só com a crítica, mas com o grande público e o público que lhe trouxe até aqui.

É muito impressionante.

Em "Não! Não Olhe!" (e fique tranquilo que não vou dar nenhum spoiler do filme), ele acrescenta ainda uma camada: a de como pessoas e seres periféricos quase sempre precisam ser "domados" pelo sistema para começar a apenas ser ouvido por ele e o altíssimo preço que se paga quando você quer realmente fazer parte dele ou se deixa domar.

O que mais me impressiona é que ele consegue fazer isso em um filme, com cara e ritmo de um bom filme de sessão da tarde. Uma obra divertida, assustadora, com imagens lindas demais de assistir, mas que se você é preto, mulher, LGBTQIA+ ou qualquer grupo minorizado, você provavelmente vai ver muito mais coisa do que um público branco tradicional de uma sala de cinema de shopping.

Pessoalmente esse filme trouxe três momentos muito importantes para mim.

O primeiro foi ter sido convidado pela Universal Pictures para ir na pré-estreia em São Paulo em um dos shoppings de mais alto padrão na cidade, em uma das salas mais caras do Brasil e ela estar praticamente cheia de pessoas pretas. Uma das experiências de ver um filme que vou levar pra vida. É esse o público que quero ver nos cinemas, ainda mais se um dia eu voltar a fazer filmes.

A segunda foi a oportunidade de entrevistar o Jordan Peele e o elenco do filme e bater um papo com eles não só sobre o filme em si, como também sobre outros assuntos que eu sempre abordo. E nos rápidos cinco minutos que nos é dado em uma entrevista com atores lançando um filme desse tamanho, ter conversas até que profundas não só com o diretor, mas com o casal de protagonistas Daniel Kaluuya e Keke Palmer, e os coadjuvantes, Steven Yeun e Brandon Perea.

Já a terceira coisa aconteceu enquanto nos despedíamos nessa entrevista. Agradeci toda a inspiração que o trabalho e a pessoa do Jordan Peele é pra mim, aí ele me mandou essa:

"Obrigado, cara. Parece que você está fazendo um ótimo trabalho para aumentar a conscientização sobre saúde mental e tudo mais, então continue. Não pare. Esse trabalho é importante, cara. Tão importante!"

Ali o nervosismo de falar com meu ídolo se transformou em um sessão de terapia em uma frase só.

Como em um filme do Jordan Peele, revi todos os traumas e barreiras que tive de passar e que me trouxeram até aqui, nesse momento, falando com ele e recebendo um elogio de quem eu nunca achei que iria conversar e que sacou em menos de cinco minutos de conversa o que era importante pra mim naquele papo e fez questão de me falar isso.

Ali me senti como um héroi. Um cowboy preto de moletom laranja fazendo o que dá para enfrentar um monstro que muita gente acha que é imaginário, mas que é real para muita gente.

Como disse pra ele no nosso papo, "Obrigado, Jordan Peele. Por tudo."

"Não! Não Olhe!" está em cartaz nos cinemas de todo Brasil.