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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Talvez você seja anarquista e não saiba

Mulher passa em frente a símbolo do anarquismo - Behrouz Mehri/AFP
Mulher passa em frente a símbolo do anarquismo Imagem: Behrouz Mehri/AFP

Emersom Karma Konchog

Colunista do UOL

21/08/2022 06h00

"O estado não violento ideal será uma anarquia ordenada."
Gandhi

"Permita que sua vida seja um atrito contra a máquina."
Henry David Thoreau

A crise na imaginação também tem um efeito devastador sobre a vida. Há uma pobreza no modo como pensamos coletivamente que tipo de sociedade queremos. Mas não é um problema de capacidade. Há todo um consenso fabricado sobre o que é permitido pensar.

Por exemplo, a solução padrão sugerida para lidarmos com o colapso ambiental é a mera adoção em massa de energia "limpa". Supostamente, haveria aí um ganha-ganha: a indústria seguiria com seus negócios de sempre e consumidores agora teriam produtos cuja produção não destrói o ambiente. Soa melhor até do que o Papai Noel.

Um dos problemas aí é que a extração em massa dos minerais dos painéis solares e baterias, por exemplo, já prenuncia outro desastre socioambiental, como sumariza
esta palestra do TED
.

Ou então poderíamos acabar com a devastação da Amazônia com um novo modelo de negócios, mais ecológico etc. Claro que essas medidas pontualmente ajudariam. No entanto, um cancro segue imune: a máquina de exploração e enriquecimento continua sendo a mesma, ganhando apenas um novo visual, pintado de verde.

Há um falha inerente em nosso sistema de progresso. Como diz o premiado jornalista Chris Hedges:

"As próprias coisas que fazem as sociedades prosperarem no curto prazo — especialmente novas maneiras de explorar o ambiente como a invenção da irrigação ou o uso de combustíveis fósseis — levam ao desastre no longo prazo. Isso é o que Wright chama de 'armadilha do progresso'."

Esse é um termo do antropólogo Ronald Wright, especialista em colapso de sociedades. Mas ao cairmos nesta auto-armadilha, neste estágio crítico, temos uma possibilidade verdadeira de reconhecer as falhas de nossos modelos de prosperidade e corrigi-las. Uma delas é o enriquecimento brutal de uma parcela mínima da humanidade às custas não apenas de todo o restante, mas também do mundo que amávamos, basicamente.

Imagino que temos o potencial, sim, para viver com base em valores como ajuda mútua, proteção recíproca e compaixão desinteressada; não apenas entre nós humanos, mas com toda a vida. Não precisamos de estruturas de poder ultraconcentradas definindo o que desejamos, consumimos e até como pensamos. Poderíamos nos alinhar com a própria auto-organização da vida ou natureza no modo como existimos neste planeta.

Esse tipo de harmonia fundamentalmente está na base de um sonho mais proibido até do que o anticapitalismo: o anarquismo. Afinal, as imagens que vêm automaticamente à mente com o mero som da palavra "anarquia" são de arruaceiros de balaclava estourando vidraças. É a isso que me refiro, por exemplo, quando digo que sofremos de uma pobreza imposta de imaginação.

Essencialmente, "anarquia" é a ancestral ideia de que não precisamos de hierarquias de poder, mas temos a capacidade de construir algo belo e próspero com base em nossas próprias capacidades e aspirações mais íntimas, de modo harmônico.

"Mas como isso poderia dar certo? Há algum exemplo que tenha funcionado?"

Sim, há um grande exemplo ao qual nos cegamos: a própria natureza, como diria Kropotkin. Na natureza, não há chefes, nem exploração e dominação. Há apenas a expressão pura e auto-organizada da vida em múltiplas formas e interconexões essencialmente harmônicas — apesar de que ultimamente isso esteja sendo amputado.

Eu evito falar sobre anarquismo devido à chance enorme de isso ser mal compreendido. Se nem o próprio sistema dominante é entendido com clareza, como uma alternativa tão inimaginavelmente oposta poderia sequer ser discutida? Mas sinto que as próprias crises atuais estão dando abertura para ideias antes tidas como inconcebíveis.

Por exemplo, em fevereiro deste ano o painel climático da ONU mencionou o decrescimento econômico como uma alternativa à narrativa do crescimento verde — que é a ideia de que seria possível continuar fazendo tudo como antes, agora com palavras ecológicas. Decrescimento se refere à ideia de que não apenas o modelo de crescimento econômico infinito é essencialmente destrutivo, mas que seu oposto deve ser buscado como uma forma de mitigação e regeneração socioambiental. Se a própria ONU já fala sobre decrescimento, por que não ir mais fundo?

Apesar de haver diversos ícones culturais que professam um "anarquismo intelectual" — como Thoreau, Gandhi, Tolstói, Noam Chomsky, Alan Moore (autor de "V de Vingança" e "Watchmen") e até Jô Soares — essa ideia ainda está bastante mal representada ou incompreendida na cultura mais ampla.

É uma pena. Pois, além de enriquecer o debate sobre a natureza de nossas sociedades e apontar direções sobre mudanças genuinamente sistêmicas, o anarquismo também é um eficaz fermento cultural. O próprio desenvolvimento da internet bebeu muito nos princípios descentralizados e auto-organizados dessa "ausência de governo" (o significado de anarquia) — apesar de hoje a coisa estar descambando para a mais vil distopia tecnológica.

Um clássico da literatura de ficção científica que adoro é "Os Despossuídos", de Ursula Le Guin — provavelmente a melhor utopia anarquista já ficcionalizada. E o tema têm ganhado também bastante voz na ficção científica contemporânea, como por exemplo, na obra de Cory Doctorow. Mas, fora desse nicho, esse impulso humano fundamental de liberdade e prosperidade última ainda tem sido muito suprimido.

Outro dia ouvi falar de uma série da HBO chamada "The Anarchists" ("Os Anarquistas"). Mas descobri que, na verdade, o título correto seria "Os Anarcocapitalistas". Anarcocapitalismo é o conceito de que capitalistas — de verdade, ou seja, multimilionários para cima — deveriam ter liberdade absoluta, sem impostos, sem regulação do governo ou de preocupações socioambientais etc.

Direta ou indiretamente conhecemos bem essa doutrina. Na verdade, podemos dizer que vivemos sob seus preceitos, que poderiam ser resumidos no slogan "anarquismo para os milionários, austeridades socialistas para o restante".

Outro fator que torna relevante essa descentralização total de poder é a nova ascensão protofascista mundial. Como diz Alan Moore — sobre o que o motivou a criar a clássica história em quadrinhos que virou também um filme muito influente, "V de Vingança" — o contrário do fascismo não é o socialismo, mas sim o anarquismo. Quando o pêndulo avança de um lado, o outro também começa a aparecer.

Minha ideia não é converter ninguém ao trazer este tema. Apenas contemplar nossa capacidade natural para a ajuda mútua já é algo. No entanto, concordo plenamente com David Graeber — uma voz que deu bastante proeminência a esse sonho com o movimento Occupy — quando ele diz que muitas pessoas já são essencialmente anarquistas mas não sabem. Ele pergunta:

— Se há uma fila para pegar um ônibus lotado, você espera sua vez e se contém para não furar a fila mesmo na ausência da polícia?

Resumindo um curto texto sobre essa questão, quem acredita que temos a capacidade de resolver situações difíceis por nós mesmos, sem nenhuma intervenção autoritária, no fundo compartilha o princípio básico anarquista, o de auto-organização espontânea.

Uma consequência lá na frente desse ideal é que, no fundo, a democracia representativa atual é um sistema de manipulação. As intenções declaradas de qualquer político ou partido, no final, acabam comprometidas, nem que sejam por forças além de seu controle, devido à própria maneira como esse sistema é projetado. Como
já escrevi, acredito em democracia direta
. No entanto, não vou anular meu voto nas eleições que se aproximam. Em situações extremamente críticas como a atual, ainda vale a utilidade do "menos pior".

Mas podemos sempre sonhar e, coletivamente, isso tem um impacto maior do que imaginamos, como diz a ecofeminista Starhawk, em outra ficção científica anarquista ("The Fifth Sacred Thing") que adoro:

"Nós obedecemos não por causa do que eles realmente fizeram a nós, mas porque tememos o que eles farão e o que podem fazer. Mas nenhum sistema de dominação pode sobreviver se ele tiver que efetivamente usar a força toda vez que quiser ser obedecido. Se nos recusarmos a obedecer, se não cumprirmos nenhuma parte do trabalho deles para eles, eles terão que cair".