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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Imaginar outro mundo é preciso

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Imagem: Getty Images

13/03/2022 06h00

Com a guerra na Ucrânia, a sensação angustiante de mais um conflito de consequências globais por si só já sufoca. Infelizmente, isso é outro sintoma do sistema mais amplo, baseado em combustíveis fósseis. Esse reconhecimento costuma aumentar o sentimento de impotência diante dessa máquina de destruição gigantesca, fortalecendo a noção de que não haveria saídas verdadeiras desta crise. Mas isso é apenas a visão de mundo dominante, uma história multiplamente construída, que impede até a ideia de que outro mundo seria possível: a noção de uma civilização humana que não se baseie no capitalismo predatório se tornou tão absurda que nem ousamos pensar nisso.

Um exemplo de quão imersos estamos nessa teia destrutiva (conforme conta o autor Umair Haque): não é novidade que os bens que consumimos avidamente, em sua maioria, vêm da China. E o plástico onipresente nesses produtos? Plástico vem do petróleo, assim como a energia usada nas fábricas chinesas também é fóssil. E de onde vêm os combustíveis fósseis da China?

Vêm da Rússia.

E continuarão vindo, talvez mais ainda agora, após as sanções ocidentais aos combustíveis russos.

No final, nosso consumo também é o que permite que essa guerra continue. Estamos cobertos de petróleo. E do modo como a economia mundial está estruturada fica hoje virtualmente impossível nos desembaraçarmos desta teia destrutiva. Como disse a cientista ucraniana que integra o painel climático da ONU, Svitlana Krakovska:

— Mudanças climáticas induzidas por humanos e a guerra na Ucrânia têm as mesmas raízes: combustíveis fósseis e a nossa dependência deles.

Essa guerra praticamente fez desaparecer o mais recente alerta da ONU sobre as graves consequências da atual emergência climática.

Mas, no quadro maior, esse conflito e a degradação do clima também são sintomas da falência de como a civilização humana está estruturada — sintomas que incluem também a pandemia, 6ª extinção em massa, desigualdade extrema (1% da humanidade tem mais da metade de toda riqueza), ascensão protofascista, atitudes supremacistas etc.

Diante disso, quem não está perturbado provavelmente está mal-informado, ainda mais levando em conta o asfixiante consenso fabricado de que o atual sistema político-econômico, baseado em exploração e dominação (do qual o socialismo chinês não se exclui), seria a única coisa que funciona para a humanidade.

Essa história é reforçada constantemente na mídia e, consequentemente, por nós mesmos. É uma ideologia que também impregna a não-ficção, além da política e economia, como em influentes narrativas da história da humanidade que aplicam retroativamente uma ótica neoliberalista, defendendo noções como "nunca houve tanto progresso como hoje", "a natureza é uma máquina", "não há alternativas viáveis ao modelo atual", como fazem Steven Pinker (em "O Novo Iluminismo") ou Yuval Noah Harari (autor do best-seller "Sapiens").

Mas um livro que peguei recentemente permite um respiro aliviado diante dessas ideias: "The Dawn of Everything" (O Amanhecer de Todas as Coisas) de David Graeber e David Wengrow. A tese da obra é que a atual desigualdade, e o modo como travamos na ideia de que tudo bem uma elite explorar a maioria e tudo ao redor, não é consequência de uma suposta natureza humana.

Baseados em recentes descobertas arqueológicas que ainda não foram integradas ao conhecimento dominante, os autores desmontam alguns mitos que eram dados como certos. Por exemplo, o de que a igualdade sem hierarquias só pode existir em pequenas tribos (não, várias das primeiras grandes cidades eram organizadas politicamente de forma igualitária), de que sociedades complexas necessariamente implicam desigualdade e exploração, de que bandos de caçadores nômades viviam num tipo de utopia natural (não, havia também exploração e desigualdade) ou de que as sociedades evoluem em mão única a partir de uma "igualdade primitiva" para uma "desigualdade civilizada" (não, essas opções também se alternam ao longo da história, havendo por exemplo "regressão").

Segundo os autores, a história da humanidade é muito mais flexível do que é imaginado. A noção de que nosso atual estágio é um tipo de ápice civilizatório é só isso: uma ideia (na verdade, uma ideologia com interesses). Sociedades humanas ao longo de dezenas de milhares de anos estiveram sempre experimentando diferentes formas de organização política e econômica, desde complexas sociedades igualitárias até a mais abjeta plutocracia, sem nenhuma direção pré-definida.

Acredito que, se hoje há um ápice, ele é apenas o teto, o fim da linha, de um tipo de organização que leva ao colapso, como as múltiplas crises atuais demonstram. Muitas civilizações caíram ao longo da história, a diferença é que hoje a civilização humana engloba o planeta; consequentemente, assim também será o colapso, caso não possamos reconhecer isso a tempo.