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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você acredita no Sistema?

"O fenômeno "Round 6": já ouvi diversos comentários sobre como essa série sequestra e neutraliza a revolta com o modo operacional de nossa civilização." - Divulgação/Netflix
"O fenômeno 'Round 6': já ouvi diversos comentários sobre como essa série sequestra e neutraliza a revolta com o modo operacional de nossa civilização." Imagem: Divulgação/Netflix

Emersom Karma Konchog

31/10/2021 06h00

Vivemos num tempo estranho. Hoje, cada verão escaldante é simultaneamente o mais quente da história e o mais fresco do resto de nossas vidas. Os desastres do clima degradado já são a maior ameaça para a saúde humana. A ONU passou a considerar um ambiente saudável como um direito humano.

Sim, essa última é uma boa notícia, mas tira das sombras dois absurdos trágicos. Primeiro: antes então — em plena era do narcisismo eletrônico — não tínhamos esse direito. Segundo: o fato de que são os governos que concedem a permissão para vivermos em um ambiente que não nos mata expõe a tirania oculta de nossa civilização.

Como diz o autor Umair Haque:

— Esta deveria ser uma Era de Revolução. Em vez disso, é uma Era de Paralisia.

Em meio ao atual colapso — que inclui não apenas a emergência ambiental, mas também as convulsões sociais devido à falência do sistema político-econômico dominante, e à regressão para autoritarismos fascistas que sempre emergem em tais crises — estamos mais preocupados com a popularidade nas redes sociais.

— Mas que colapso? Isso é alarmismo, catastrofismo. Tirando alguns ajustes — como comprar créditos de carbono e cada um plantar sua árvore — está tudo bem. Podemos continuar crescendo nossa economia e expandindo nosso desenvolvimento (industrialização).

A insistente negação de que algo está não apenas errado, mas profundamente corrompido e contaminado, é o que nos torna impermeáveis até à ideia de mudança. Afinal, se a própria classe dominante ("Mas que classe dominante? Isso existe?") fosse reconhecer os sinais de colapso em nossas sociedades, isso seria o mesmo que admitir que nosso sistema político-econômico não funciona (para preservar a vida e o bem-estar, apesar de ser muito eficaz para tornar bilionários os já milionários).

A válvula de escape básica para essa obviedade gritante de que há um mal nos estrangulando é o entretenimento. Por exemplo, o fenômeno "Round 6". Não vi, mas já ouvi diversos comentários sobre como essa série sequestra e neutraliza a revolta com o modo operacional de nossa civilização. O monstro é escancarado, mas não teríamos como escapar.

Como dizia o crítico cultural Mark Fischer, a crítica ao sistema é um dos pilares que o sustenta. Ou como colocou outro porta-voz nessa área, Daniel Pinchbeck:

— A auto-alienação da humanidade chegou a um ponto em que vivenciamos nossa própria destruição como um prazer estético de primeira classe.

Não precisamos mais mascarar o horror com zumbis, alienígenas, demônios, robôs assassinos, desastres apocalípticos, pragas ou espíritos malignos. O Sistema agora é um ícone pop, tornando-se uma "realidade irreal". Percebemos e temos indignação, mas deixamos ele lá, como um monstro intocável, um dogma irrefutável, uma mentira inquestionável.

Esse sequestro de nossa insatisfação acontece em todos os níveis. Por exemplo, no artigo anterior mencionei como
até a busca espiritual, ou por propósito, pode terminar cooptada.

Esta própria internet é outro exemplo. Lá no começo dos anos 90, imaginávamos como essa tecnologia sem precedentes, descentralizada, horizontal, sem hierarquias iria revolucionar as sociedades humanas. Revolucionou sim: agora o controle das massas é automatizado via zap, eleições são manipuladas com anúncios de Facebook, assim como a facilitação de golpes de estado e o sequestro da opinião pública nas bolhas de desinformação. E para comemorar, nada melhor que uma dancinha no celular.

Apesar de ser apresentado como onipotente, o Sistema não é uma força invisível e invencível, um mal necessário, o preço do progresso, o reflexo de uma suposta natureza humana egoísta. Simplificando, ele é apenas a ideologia que funciona como o software de como operamos coletiva e individualmente.

De um lado, o 1% se beneficia imensamente desse sistema, baseado em exploração e destruição em massa — ecossistemas, vidas de seres, angústia e sofrimento humanos, tudo é explorado e monetizado, gerando riqueza extrema para essa parcela microscópica em número, mas gigantesca em influência e poder.

Do outro lado, entre os 99%, muitos acreditam no conto de que se beneficiam disso ou vão se beneficiar, mesmo em meio à mais pura desgraça. Essa crença é reforçada o tempo todo, de todos os lados.

Assim, não há como haver nenhuma mudança se não nadarmos contra essa corrente, que leva para o abismo, para o buraco sem fim da ignorância e autodestruição. Não é preciso fazer nada para chegar lá, basta soltar e deixar fluir, como as crises atuais demonstram.

Para ir contra a corrente, é preciso reconhecer: esse sistema existe, é extremamente prejudicial, está nos puxando, mas é possível sim ir na direção oposta e, no final, neutralizá-lo.

Não se trata de voltarmos nossas forças contra o "capitalismo", da maneira como essa palavra é entendida. No imaginário popular, ser antissistema ou anticapitalista talvez envolva regredir para uma condição em que não usamos mais dinheiro, para trocar galinhas por couves. "Se não for isso, certamente é comunista..." Não, não é isso.

É sobre a incoerência de uma ideologia onde, na verdade, apenas só algumas pessoas prosperam, espalhando catástrofe. O restante compra uns eletrônicos e se convence de que está tudo bem, e/ou não tem como fazer nada além de ir sobrevivendo. O mundo vira concreto, contaminação, soja, plástico e pasto. O ar passa a matar. O clima passa a destruir. A comida nos envenena. As corporações e seus políticos comprados se tornam cada vez mais poderosos. As pessoas começam a se odiar, ou no mínimo chafurdamos num mata-mata por quem vai ganhar.

Para não nos revoltarmos diante dessa realidade, é preciso negar, não enxergar, ser convencido de que não é tão mal, e se for ruim, não haveria o que fazer.

Um outro exemplo sobre o sequestro do bom senso pelo Sistema: nos últimos anos, a mensagem sobre a urgência de revertemos o colapso ambiental no planeta está cada vez mais presente na arte; por exemplo, na literatura. E isso vem sendo criticado como sendo militância política. Ou seja, a discussão sobre a preservação da vida passou a ser vista como uma opinião político-partidária!

Muitas vezes eu fecho esta coluna com o bom e velho clichê da "chave de ouro": uma mensagem que resume tudo em uma conclusão inspiradora. Hoje não. Reconhecer o Horror realmente é necessário. Tudo parte daí.