Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O que a ignorância sobre a consciência alheia diz sobre nós
Há uma nova onda de descoberta de consciência e inteligência em seres que desconsiderávamos. Quando escrevi sobre isso há umas semanas,dois exemplos foram a inspiração principal, mas acabei não mencionando-os: o episódio sete da segunda temporada do novo "Cosmos" e o aclamado documentário "Meu professor polvo".
"Meu professor polvo" é um exemplo genuíno de "contato imediato do grau animal", de uma inteligência animal até então oculta que, quando se apresenta por inteiro, nos deixa completamente sem palavras. Especialmente devido ao fato de que polvos vêm de uma linhagem separada dos mamíferos. Com tempo suficiente, a evolução da consciência simplesmente acontece, independente do número de braços ou de um córtex cerebral!
Esse é o tema também do episódio citado da refilmagem da saudosa série "Cosmos", do lendário astrobiólogo Carl Sagan — agora apresentada pelo astrofísico Neil deGrasse Tyson. Nesse episódio sobre a busca por inteligência, Tyson narra a única história de primeiro contato com uma civilização inteligente que ele tem notícia: uma sociedade de democracia exemplar, cuja comunicação se baseia em geometria, matemática e até astronomia. A sociedade das abelhas!
Elas fazem coisas como deliberar em assembleia sobre o melhor lugar para uma nova colmeia, e andar desenhando símbolos geométricos que, por exemplo, indicam com precisão um local há mais de um quilômetro de distância (esses símbolos contém até o ângulo do voo necessário em relação ao sol).
Abelhas também tem a capacidade de reconhecer rostos de diferentes pessoas e podem aprender o significado de novos símbolos arbitrários (como triângulos ou círculos) em testes de laboratório. Cientistas que estudam seu cérebro acreditam que elas até sonham. Estamos mesmo falando de algo que chamamos de — e tratamos como um — inseto?
Nos consideramos tão evoluídos e sofisticados, mas basta olhar em volta com atenção que diferentes formas de consciência e comunicação não param de surgir. Por exemplo, minúsculos peixes limpadores conseguem reconhecer a si mesmos num espelho.
Árvores usam a rede subterrânea de micélio para se ajudarem e trocarem informações. Após estudar minhocas em sua casa por décadas, Charles Darwin se convenceu da inteligência delas. Há até um inseto microscópico chamado tardigrada — um dos seres que certamente sobreviverá à atual extinção em massa na Terra, já que passou intacto pelas cinco anteriores e consegue manter-se vivo no espaço sideral! — que já foi observado em comportamento afetivo, sem nenhuma função biológica específica: seres microscópicos se abraçando com carinho!
Ainda nem temos uma noção razoável sobre o que é vida ou consciência, mas já estamos varrendo tudo do mapa, em nome de contas bancárias mais gordas e alguns produtos descartáveis como celulares e carros.
O próprio fato dessas "pequenas" descobertas sobre a natureza serem tão deslumbrantes para nós mostra quão estreita é nossa viseira de cavalo. Em nossa febre de crescimento, produção e consumo, para seguir devorando tudo à nossa volta — como nos recentes surtos de nuvens de gafanhotos — não temos outra opção senão um tipo de cegueira mais ou menos voluntária sobre o que é a natureza, quem somos, com quem dividimos consciência, como nos inserimos no mundo. Se realmente enxergássemos essas coisas, não teríamos como prosseguir com a atual destruição.
O mesmo vale para a indiferença que temos com nossa própria espécie. Muitas vezes, basta ser de outra classe, etnia, país, outra crença ou ideologia, e já não reconhecemos mais nossa humanidade compartilhada. Assim, enxergamos sob a ótica supremacista, ou então da demonização de inimigos.
Perder a capacidade de se reconhecer em outras pessoas e seres vivos — de perceber a ligação, a aspiração pela vida — de certa forma é um tipo de morte. Mas independentemente de reconhecermos ou não, a interligação existe. Do total de mamíferos do planeta, 96% se referem a humanos (36%) e animais criados por humanos (60%). Apenas 4% são selvagens. Então surpreende a atual disseminação de morte e degradação pelo globo?
Acordarmos desse pesadelo que criamos é algo que vale a pena não apenas pela abertura da visão, pela beleza, pelo desvelamento da própria realidade do mundo e de nós mesmos, de forma a sustentarmos e promovermos a vida. Nossa sobrevivência também depende disso.
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