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Mente Natural

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O que perdemos exatamente com a emergência ambiental?

Cena do documentário "Home" - Reprodução
Cena do documentário "Home" Imagem: Reprodução

Emersom Karma Konchog

07/03/2021 04h00

Respondendo à pergunta do título, basicamente estamos perdendo vida. Mas, no fundo, o que é vida? Talvez, por não termos uma noção muita clara sobre isso, sua perda em escala massiva e planetária acabe não chocando muito. Manter uma consciência mais nítida sobre nossa inseparabilidade desse processo que permeia nossas identidades, e que chamamos de vida, é um fator decisivo para a possibilidade de revertermos nossa autodestruição.

Se pararmos para olhar, podemos descobrir que o simples fato de podermos respirar é quase como um milagre de múltiplas condições se alinhando: a abundância de oxigênio na atmosfera se consolidou há 2,3 bilhões de anos, devido ao surgimento e disseminação de bactérias que soltam oxigênio. São as mesmas bactérias que, em simbiose com outros organismos, deram origem às plantas e animais, segundo a teoria da simbiogênese, uma das mais aceitas hoje para se explicar o surgimento de diferentes seres.

Essa mesma teoria está intimamente ligada à ideia da biosfera como um sistema auto-organizado, ou seja, como um ser vivo planetário, ou Gaia, que em interação com os elementos inanimados da Terra tem a capacidade de manter em equilíbrio os fatores que garantem a habitabilidade do planeta, como temperatura, níveis de oxigênio, correntes marítimas etc. É o mesmo processo que, nos corpos de animais e plantas, integra material orgânico e inorgânico de tal forma e gerar autorregulação (para saber mais, confira o livro "O que é vida", da lendária bióloga Lynn Margulis, que foi uma inspiração para este texto).

Compartilhamos uma natureza, cuja base é simbiose, cooperação e não a aniquilação alheia. Florestas, répteis, algas, insetos, peixes, bactérias... Somos todos irmãs e irmãos, descendendo de uma única célula, cujo processo de divisão celular iniciado há 3,5 bilhões de anos nunca foi interrompido.

A vida em nossos corpos, que evoluiu para transformar em energia a luz de uma estrela em fusão nuclear, e o brilho de nossas mentes, capaz de se reconhecer em outros seres vivos ou até de autoiluminar-se, se estende para muito além de nossos membros, para mais longe do que nossos sentidos podem perceber e mais fundo do que nosso intelecto consegue conceber.

Não é tão difícil compreender essas coisas. Mas por que esse entendimento não se reflete em nossas atitudes? Um dos motivos é sermos constantemente bombardeados com mensagens que vão na direção contrária. "Sentindo um vazio? Falta alguma coisa? Compre algo novo, acumule riqueza, seja produtivo, aniquile a competição, controle seu mundo, domine a natureza..." Ouvimos isso não apenas na mídia, mas repassamos isso uns para os outros, e é assim que acabamos funcionando individual e coletivamente.

Desconexão

Esse "vazio" também se relaciona com o sentimento de desconexão, como se a natureza fosse algo lá fora para nos conectarmos (nem que seja pela exploração). Mas não precisamos estar imersos em uma floresta ou paisagem natural para percebermos a grandiosidade daquilo que chamamos de vida. Apenas estar vivo com a consciência de sermos completamente interdependentes com tudo mais, até as estrelas, já pode trazer um olhar transformador.

Mas parar para olhar é justamente algo que nosso estilo de vida não permite. Um olhar mais sutil e penetrante é justamente o oposto das vistas grossas que mantemos para o círculo predatório de nossas sociedades continuar. É nesse processo que podemos perder nossa valiosa conexão com a própria vida, conosco mesmos.

Apreciação

Ao simplesmente escolher com mais cuidado o que nossa mente "consome", a própria mídia pode se tornar uma inspiração para a mudança. Por exemplo, um dos momentos mais transformadores de minha vida foi sentar na frente de um computador e assistir "Home" (disponível livremente na web), do consagrado documentarista francês Yann Arthus-Bertrand, em 2009.

Esse clássico ambiental usa, não por acaso, uma abordagem parecida com a deste texto. Começa com os aspectos arrebatadores de nosso lar, a Terra, de como tudo se interliga em perfeição. As tomadas aéreas criam um ponto de vista elevado, um olhar privilegiado, que ao mesmo tempo que nos apequena como seres vivos, imersos no esplendor natural, também expande a visão num tipo de consciência superior. É um exemplo de documentário elevado ao estado da arte.

Então, após essa reconexão emocional, estética e que também toca em nossa constante busca por significado e propósito, quando já estamos mais receptivos e abertos para reconhecer os aspectos dolorosos de nossa ligação com o mundo, começam os retratos dilacerantes da devastação humana.

Assistir "Home" hoje acaba trazendo um senso de urgência ainda mais gritante, já que o que já era uma emergência há 12 anos só se agravou.

Estamos morrendo

A crise em que nos encontramos não diz respeito somente à pandemia, que também é resultado de nossa devastação do mundo natural. Apesar de no Brasil ainda não termos acordado como sociedade para a gravidade do problema, pelo mundo afora, até multibilionários como Bill Gates, políticos conservadores como o primeiro-ministro britânico Boris Johnson ou instituições financeiras como o Banco Mundial reconhecem a emergência climática como o principal desafio de nossa civilização hoje.

Todos queremos nos ver livres da covid-19 e todas as sociedades estão mobilizadas nesse sentido (apesar de algumas incompetências criminosas). Já em relação à situação emergencial causada pelas emissões de gases do aquecimento e extinção em massa de espécies e ecossistemas, as contramedidas não chegam nem perto — sem falar no silêncio quase completo sobre a gravidade do problema, que é perpetuado pela mídia e se reflete na inconsciência da sociedade em geral.

Em 2018, doenças causadas pela poluição provocada pela queima de combustíveis fósseis mataram 8,7 milhões de pessoas, segundo uma pesquisa recente.

Esse número é o triplo do total de mortos na atual pandemia, e se refere apenas a um dos diversos aspectos dessa crise: poluição.

Apesar da gravidade da emergência ambiental como um todo, há um silêncio e negação gritantes, especialmente no Brasil. Mas parte dessa recusa em olhar também pode vir de um impulso interno de evitar e negar a dor, conforme mencionei no artigo anterior.

Já a força para podermos encarar de frente esse monstro, e responder efetivamente, vem justamente de nos reconectarmos com nossa própria natureza. Pode ser algo doloroso, mas essa religação também costuma trazer uma energia, uma fonte de vida, que não sabíamos ter. E ela é inesgotável, como a própria a vida maior que integramos.

Essa reconexão pode ter um papel-chave para tentarmos sair desse caminho rumo ao abismo, já que por mais básico que isso possa soar, na sociedade como um todo ainda não existe a consciência sobre sermos a própria natureza, uma consciência que seja inseparável de nossas ações.

Um exemplo que ilustra bem a cegueira com que estamos nos conduzindo: em termos científicos e filosóficos, não há consenso sobre o que é a consciência. No entanto, nossa ética de produção e consumo parte do princípio de que "como não compartilhamos uma consciência com não humanos, então, podemos explorá-los e exterminá-los à vontade". Não sabemos nem exatamente o que é isso, mas agimos como se apenas humanos tivessem consciência.

E se consciência for um princípio inerente à própria vida? Não uma consciência humana que pensa e cria, mas uma capacidade básica de sentir e perceber, que permearia toda a rede da vida, como afirmam algumas correntes filosóficas. Então, a atual devastação com objetivo de lucro individual ganharia uma dimensão ética ainda mais insana, antivida.

Guarda

Com uma nova consciência natural que se percebe e cuida de si mesma, assumir a responsabilidade pela regeneração e cura acaba se tornando não apenas um imperativo moral, mas é simplesmente a expressão de quem somos num nível mais profundo: a própria vida. Essa regeneração não se refere apenas ao mundo natural, mas também sobre como nos relacionamos conosco mesmos e com os outros, em um círculo de amor e compaixão que abraça a tudo em todas as direções.

Humanos assumindo a guarda da natureza pode soar como algo prepotente, mas não se trata de fazer isso como donos ou seres superiores. É simplesmente autocuidado. Podemos e devemos agir assim simplesmente porque está dentro de nossas capacidades. Se podemos fazer, quais seriam os argumentos contra isso? Se fizéssemos uma lista, as respostas teriam que partir da premissa de que estamos separados da natureza, ou seja, não se baseariam na realidade.

"Talvez tenha chegado a hora de pararmos de chamar isso de visão 'ambientalista', como se fosse uma campanha separada da atividade humana central, e passar a chamá-la de visão do 'mundo real'." Edward O. Wilson, biólogo estadunidense.

Convite

No próximo dia 19, eu e alguns amigos do podcast Coemergência estaremos reunidos num encontro online para uma roda de conversa sobre "Emergência ambiental: o que podemos fazer a respeito", de participação gratuita. Caso interesse, cadastre-se neste formulário.