Julián Fuks

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Opinião

Sobre o vasto mundo das crianças, e seu exemplo de leveza e liberdade

Chama-se Tartaruga, nome porventura irônico, dada sua velocidade impressionante. Na última segunda deu-se sua fundação: as três meninas se furtaram ao recreio costumeiro e se reuniram numa sala recôndita, deliberando a criação da editora. Tulipa seria a autora, Bárbara, a ilustradora, Iolanda, a diretora editorial. Como aquele não era um ato burocrático, e sim artístico, já ali conceberam duas ou três dezenas de títulos e algumas trilogias temáticas. Cogitou-se que "A biblioteca secreta" fosse a obra pioneira, para apontar desde já a unicidade da experiência. O avô de Iolanda se incumbiria de construir estantes de madeira para comportar todo o acervo.

Desse primeiro catálogo, chama a atenção a repetição de personagens cuja vida contraria sua suposta essência, obrigados a lidar com uma identidade contrafeita, uma vocação mal resolvida. "O tigre banguela", "O peixe que não sabia nadar", "A professora que não sabia contar", ou "A girafa Lili", história de uma girafa de pescoço curto demais, acusada por suas amigas de não chegar a ser girafa nenhuma. "Como fazer amizade com uma fera" é um título do acervo que talvez ajude a compreender essas agruras e contrariedades da existência. "O gigante que queria ser gentil" Tulipa prometeu que dedicaria a mim, e eu tratei de sorrir com máxima gentileza.

No recreio de terça a editora já não era tão secreta, e a informação pública acabou suscitando as primeiras críticas ao empreendimento. Como as colegas que se aproximavam tendiam a ser repelidas pela equipe fundadora, inevitavelmente se difundiu uma justa maledicência. Houve quem acusasse a Tartaruga de exclusivista, fechada em seus conchavos e compadrios. Houve quem julgasse a editora pouco aberta às novas vozes da literatura infantil brasileira, vozes mais radicais e heterodoxas. É possível que algo dessa experiência ríspida venha a ficar registrado num díptico de livros mais recentes: "Como a escola é divertida!" e "Como a escola é cansativa!"

Nada, porém, fez arrefecer o ímpeto das meninas, cuja vida passou a ter como cerne a feitura desenfreada de livros — algo bastante surpreendente, se levarmos em conta que elas não passam dos seis ou sete anos e acabam de aprender as mais rudimentares ferramentas de escrita. Seus personagens se defrontam com seus próprios limites, encaram os contratempos da vida, mas supõe-se que venham a superá-los com destreza e alguma altivez. "Meninas podem ser tudo", diz um dos títulos mais resolutos e feministas do catálogo, título que se viu complementado por outro, "Meninos podem ser tudo", talvez em antecipação às críticas que poderiam receber de um público conservador.

Na quarta, deu-se um acontecimento decisivo. Distraídas na confecção dos livros, mais uma vez elas descuidaram do sigilo e não notaram a aproximação de uma autoridade no meio do recreio. A professora entusiasmou-se com o projeto, e elas se entusiasmaram com o entusiasmo alheio, só então descobrindo que faziam algo digno de louvor. O projeto foi levado para dentro da sala e apresentado a todos, tornando-se a próxima lição de casa: cada aluno deveria escolher um título do vasto acervo e escrever sua versão da história. A equipe autoral reduzida, então, de uma editora que alguém chamaria artesanal, passou a ser composta por algumas dezenas de autoras e autores.

Na quinta, mais um movimento inesperado. Os primeiros críticos, inconformados com o caráter oficial que a empresa começava a ganhar, protestaram contra tal favorecimento, avisando que também eles haviam criado uma editora uns dias atrás. Como de costume, os assuntos literários adquiriam um tom belicoso, submetidos às escaramuças típicas do mercado editorial. Com a arbitragem da professora, pois, realizou-se uma difícil fusão, e assim surgiu na escola uma nova empresa de proporções impensáveis, que já conta em seu catálogo com mais de uma centena de livros, e exigirá do avô de Iolanda um esforço suplementar. Hoje se pode dizer, sem grande exagero, que a Tartaruga é um conglomerado editorial.

Inerte, calado, fechado em meu escritório, reflito sobre a semana agitada da minha filha e solto no ar um suspiro de admiração, que em seu último instante se desfaz em sopro de lamento. Desde segunda só o que fiz foi travar batalha contra uma única frase, a abertura de um capítulo que não sei se desejo reflexivo ou direto, tortuoso ou sumário. A dúvida consumiu cada um dos meus gestos, e a literatura se fez coisa sisuda e insensata, uma estranha forma de engenharia que nada constrói.

Olho para Tulipa, empolgada com sua criação irrefreável, tomada por seu projeto ambicioso, e percebo quanto careço de sua leveza, de sua inocência, de sua liberdade. Queria aprender a brincar com ela, queria que a escrita fosse em mim essa diversão compenetrada, essa conquista veloz do mundo, essa contínua revelação do inesperado. "Minha vida mudou quando você nasceu", leio num dos títulos da Tartaruga que Tulipa pretende dedicar à irmã. Minha vida mudou muito, devo concordar, e tenho a certeza, e tenho o desejo, de que sob sua influência muito ainda possa mudar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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