Julián Fuks

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Opinião

Ser o que não se é: uma evocação da infância, do sonho, da poesia

Um urso vê que os gansos estão voando para o sul, vê as folhas amareladas das árvores, e entra numa gruta para hibernar. Enquanto hiberna, chegam hordas de homens com tratores e tudo alteram ao seu redor, na construção de uma imensa fábrica. Quando o urso enfim desperta, vê que já não há floresta e teme estar sonhando, mas se depara com a dureza do real. Um homem o flagra ali atônito, à toa, e quer obrigá-lo a trabalhar, mas ele se revolta: "Eu não trabalho aqui. Sou um urso." Ao infinito a discussão se repete, com o chefe, o diretor-geral, três vice-presidentes da fábrica, o presidente. Invariavelmente o urso recebe a mesma resposta: "Você não é um urso coisa nenhuma. É um homem bobo que precisa fazer a barba e usa um casaco felpudo."

O livro é de Frank Tashlin, chama-se "O urso que não era". Li essa história para as minhas filhas com olhos de espanto e lábios de incredulidade. Havia tempos não me deixava tocar por uma escrita tão exata, por uma expressão tão sensata da insensatez que tudo governa, do absurdo que chamamos realidade. Tulipa me olhava com desconfiança, como se sentisse ironia em meu elogio tão exaltado. Nela o livro não provocava tamanho assombro, era uma boa fábula e nada mais, como tantas outras. Ela não entendia bem do que eu ria, do que eu chorava.

Às crianças não lhes causa muito espanto que uma coisa a um só tempo seja e não seja uma coisa. Isso é parte de sua existência regular, seu mundo é feito de desvios constantes: unicórnios existem e depois não existem, tardígrados existem, narvais não existem e depois existem. Elas mesmas têm consciência de seu próprio incessante devir, sabem que hoje são meninas pequenas e logo serão meninas grandes. Por isso a mágica não as conquista de imediato: o ilusionismo não provoca muita surpresa nos que vivenciam um mundo carregado de ilusões. É preciso que criem um primeiro ceticismo, para que então o choque do irreal produza nelas algum fascínio.

Para os adultos, esses momentos de descoberta do inaudito guardam um apelo porque são raros, e porque exigem uma suspensão das certezas excessivas em que teimamos em confiar. Talvez só no sonho e na poesia haja coisas que são o que não são, coisas que não são o que são. Estamos ali e não estamos, vivemos o que vivemos mas não vivemos, sabemos o que sabemos e então não sabemos. Nisso a graça do sonhar se parece à graça do escrever, como bem soube insinuar Clarice Lispector: "Escrever é fazer a palavra dizer o que a palavra não é". Isso nos bons momentos, é claro, apenas quando a língua consegue fugir ao destino que lhe impõem tantos chefes, diretores, tantos vice-presidentes.

Já fazia algum tempo que me frequentavam esses pensamentos sobre o urso quando topei com um poema de Mário Quintana. Um poema bonito e cômico sobre um tal Don Ramón, notório beberrão que tenta voltar para sua casa, cambaleante. No caminho avista uma árvore e um touro, mas em sua torpe visão enxerga tudo duplo: uma árvore que é e uma que não é, um touro que é e outro que não é. Don Ramón sobe na árvore que não é, e então é atropelado pelo touro que é; assim acaba o poema. Poema singelo que é e não é um poema, que é e não é de Quintana, que talvez por isso o escreva num disparatado portunhol.

À citação de Clarice também cheguei por vias tortuosas, espanholadas, num livro da argentina Ariana Harwicz, "O ruído de uma época". Em outra página ela afirma guardar consciência de ser escritora todos os dias de sua vida. Diz que sente isso quando lê, quando ouve música, dá uma entrevista ou percorre um vinhedo. Mas diz que não o sente enquanto escreve. Enquanto escreve, não sabe bem o que é, mas sabe que não é escritora. É esse não saber o que a leva a escrever o que ainda desconhece, penso, numa língua que não é de todo sua. De minha parte não sou tão convicto, temo não ser tão pleno de mim. Quase nunca sei se sou escritor, se tudo isto não passa de uma ilusão que me envolve à toa, ou de uma ridícula fraude que alguém denunciará um dia.

Mas o caso é que preciso convencer as minhas filhas a sair do escritório para que eu possa escrever este texto, porque um chefe aguarda a entrega do meu serviço, porque o prazo é exíguo e um pouco me oprime. "Mas por que você precisa escrever agora, papai?", Tulipa me provoca com algum ardil, com uma ligeira insinuação de sorriso. Porque sou escritor, filha, porque esse é o meu trabalho, não posso viver de hibernar. "Não, papai, você não é um escritor coisa nenhuma. É um homem bobo que precisa fazer a barba e usa um casaco felpudo."

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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