Julián Fuks

Julián Fuks

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Genocídio: palavra necessária que se converte em grito de basta

"Toda palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada". Assim escreveu Samuel Beckett, que travava intimidade máxima com os limites da linguagem, e fez de sua escrita um manifesto contundente sobre a incompreensão entre as pessoas. Toda palavra erra, toda palavra altera, deturpa, distorce, toda palavra é sempre uma expressão insuficiente da realidade. Tenta se aproximar do sentido, mas não pode senão turvá-lo irremediavelmente.

Assim, se essa é a condição inevitável de toda linguagem, causa estranhamento que se acuse o emprego inexato de algum termo importante, digamos "genocídio", e que se faça do impasse linguístico a discussão central num contexto de morticínio cruel e desvairado. As palavras são aproximações, e são também propostas de interpretação. São, em última instância, tomadas de posição. Dizê-las não é determinar precisamente coisa alguma, e sim sugerir um olhar que conclame uma ação, neste caso tão urgente quanto incontornável.

Não nos cabe esperar a autorização definitiva para usar uma palavra. Se só as instâncias jurídicas mais elevadas têm a prerrogativa de afirmá-la, a palavra então inexiste e não vale nada, burocratizou-se a ponto de já não significar. Não faz sentido abdicar de seu sentido, tal cautela não é justa nem razoável. A cada vez que estivermos diante de um massacre, de uma chacina, de uma matança massiva, de uma catástrofe humanitária, a palavra "genocídio" há de saltar aos lábios. Pronunciá-la será sempre o ato necessário, o mais extremo alerta para a gravidade do caso.

Chama a atenção o argumento frequente de que não seria possível mobilizar a terminologia do Holocausto para tratar de outros cenários e realidades, que isso seria diminuí-lo, rebaixá-lo, conspurcá-lo. Por esse argumento, o genocídio perpetrado pelos nazistas contra tantas vítimas, sobretudo judeus, mas também homossexuais, o povo Roma, pessoas com deficiências, comunistas, inimigos de guerra, seria uma manifestação única do mal e do horror, jamais equiparável a qualquer outra. Um acontecimento isolado no mundo, absolutamente excepcional, inesgotável por qualquer palavra, relato ou obra de arte. Estaríamos diante do irrepresentável.

Ora, quem quer que se aproxime desse grotesco episódio histórico e se ponha a observar suas reverberações infindáveis sabe que de isolado ele não tem nada. Sabe que foi fruto de uma violência crescente contra suas vítimas, do rampante antissemitismo que rugiu no terror dos pogroms e que nunca chegou a se calar. E sabe que as práticas nazistas foram repetidas em muitos outros lugares, transmitidas como ensinamento militar a tantas outras forças atrozes, ao exército francês na Argélia, às ditaduras latino-americanas. Tudo se expandiu e se replicou da pior maneira, com consequências nefastas, tudo ainda persiste como uma sombra ominosa sobre a infeliz humanidade.

Seria estranho, então, seria de todo incompreensível se não se pudesse mobilizar a partir do acontecimento histórico também os termos de uma resistência, abordando-os em novo contexto. Foi fundamental compreender o próprio Holocausto como um genocídio, empregando ali o termo que já podia descrever a execução do povo armênio, termo que mais tarde nomearia o massacre de tutsis em Ruanda, e que tardiamente seria usado para referir a dizimação dos povos originários das Américas. São todos genocídios, são todos tragédias indizíveis, atrocidades sistêmicas em que a humanidade inteira pôde descobrir sua face horrenda, em que a humanidade inteira feneceu.

É preciso preservar a vida de todos os povos, e é preciso preservar a vida das palavras. Não perder um vocábulo essencial de denúncia como "genocídio", não abdicar da força do que ele diz, do inaceitável que ele representa. Genocídios aconteceram demais desde tempos imemoriais, e continuam a acontecer neste presente que povoamos de palavras. Dizê-lo, atribuir o nome próprio a um acontecimento brutal, é um ato fundamental. Uma palavra tão poderosa é um grito de basta. Qualquer genocídio deveria ser o último, e então nunca mais. Estaríamos sempre, a cada vez, diante de um acontecimento irrepresentável, único, intolerável.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes