Julián Fuks

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Opinião

A inquietude imobiliária: sobre a cidade à venda e o desejo de se mudar

Pode ser uma impressão equivocada, pode ser uma atração exagerada do meu olhar. Mas sinto que em minha cidade nunca houve tantas casas à venda, tantos apartamentos desejosos de um novo proprietário, tantos terrenos baldios a exibir suas figueiras para seduzir algum comprador. Por toda parte vejo placas, em cada bairro por que passo, tudo parece posto à venda em simultâneo, em ação coordenada. Como se todos os habitantes de uma cidade decidissem no mesmo instante se mudar, num livro nunca escrito por Saramago. Ou então como numa brincadeira infantil, em que uma voz gritasse "já" e todos fossem obrigados a largar seus lares e encontrar um novo lugar.

Insisto, pode ser que nada disso se passe, pode ser que eu esteja projetando nos outros apenas o que inunda a minha intimidade — não passo de um cronista, afinal. Já há algum tempo me vejo tomado por algo que acabei chamando de inquietude imobiliária. Uma insatisfação difusa e injusta com os espaços onde minha vida se dá, com o quarto colorido e modesto onde brinco com as minhas filhas, com o escritório em que troco turnos com a minha companheira. Sem que nada me incomode de verdade, sem que me sejam de fato necessários uns metros a mais, me vejo a sonhar com outra casa, informe ainda, inexata, onírica.

Há anos tenho o mesmo sonho recorrente: estou percorrendo algum cômodo ultraconhecido da minha própria casa e me deparo com uma porta misteriosa, uma janela, um alçapão. Abro e descubro o que sempre esteve lá: o espaço que me faltava, um lugar para a escrivaninha própria, e para as vastas estantes em que eu poderia enfim ordenar os livros que vão se espalhando pelo chão. É um sonho vívido: a cada vez acordo largo e aliviado, e levo alguns segundos para voltar à estreiteza da realidade. Trata-se da expressão inconsciente da inquietude imobiliária, é o que agora me vejo a interpretar.

Que essa condição não é exclusividade minha deduzo pela fartura de placas de vende-se que se espalham pela cidade, mas não só por isso. Num ensaio de Natalia Ginzburg intitulado "A Casa", a condição não chega a ser nomeada, mas é descrita pela autora com sua habilidade costumeira. Ela conta o dia em que, sem muita razão nem apoio da família nem dinheiro para isso, se pôs a procurar casas pelos mais variados bairros de Roma, "possuída pelo demônio da busca". Era um movimento incontível, mesmo sob "o silêncio irônico e desdenhoso" do marido que logo passa a acompanhá-la na aventura, era uma busca por "quimeras e sonhos impossíveis", era um impulso insensato e imperioso do qual jamais escapariam.

Entrar na casa alheia, cogitar que se torne casa própria, é inventar para si uma vida nova, a um só tempo fugaz e fulgurante. Ginzburg e o marido costumavam passar duas semanas cortejando cada casa, para então desistirem da compra e nunca mais voltarem. Hoje é tudo muito mais acelerado: entra-se na casa por alguns minutos através de suas imagens, num só dia é possível experimentar dezenas de vidas novas, centenas se a inquietude for grande. No tempo desse brevíssimo olhar adquirimos novos hábitos, ficamos a ressonar naquela cama de cabeceira barroca, nos debruçamos naquela varanda para ver a cidade cinza de um novo ângulo. Por um átimo, enquanto nossa imaginação se vê acomodada nessa outra casa, nos tornamos outros.

Nesse jogo, é possível perceber, encontrar de fato um imóvel e poder comprá-lo é algo quase irrelevante: essa talvez não seja a finalidade de todo o esforço. Ginzburg e o marido acabam por se mudar, sim, mas antes disso ela chega a postular para si as interrogações mais importantes. Será que na verdade ela não procurava casa nenhuma, será que só estava insatisfeita consigo mesma? Seriam todas as casas boas o bastante desde que morasse ali outra pessoa que não ela? Penso então que sua inquietude talvez não fosse propriamente imobiliária, e sim existencial, uma inquietude vital que a impelia a alterar as condições de sua presença no mundo, numa busca ainda desordenada.

Volto a pensar na imensidade de placas de vende-se que proliferam pela cidade, cada uma exposta ali, talvez, por uma pessoa que deseja se mudar. Que aspecto da vida urbana ou social tem provocado tamanho desejo de transformação? O que significa que tantos se vejam tomados no mesmo momento por essa inquietude imobiliária, isto é, existencial? Por que a um só tempo tantos de nós estaremos querendo nos tornar outros?

Sobre as crises de seus concidadãos não convém a um cronista especular muito, nesses gestos imprudentes sempre lhe cabe algum pudor. Mas sobre mim posso dizer que já me vejo mais sossegado em minhas insatisfações. Que ter descoberto o aspecto mais íntimo e profundo da inquietude fez com que eu voltasse a me sentir em casa em minha própria casa, voltasse a prezar os livros que me cercam pelo chão, e a escrivaninha em que delineio estas palavras.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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