Julián Fuks

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Opinião

Parabará, bará, bará, parabarabará! Precaríssimo anedotário do Carnaval

O Carnaval pode ser uma diversão quimérica, a busca contínua por um estado que jamais se alcançará. Nessa busca é preciso aguentar o choque incessante entre os corpos, o tempo inclemente, a embriaguez em horário insólito, a música às vezes distante, às vezes duvidosa. E então acontece o momento surpreendente em que todas as insatisfações cessam, todos os anseios se cumprem, e se atinge aquela felicidade boba e profunda e bela que antes julgávamos inexistente.

Éramos muitos debaixo daquele viaduto, e cantávamos juntos numa confusão de timbres, cantávamos nada além de um parabará, bará, bará, parabarabará!, comandado por sopros e repetido ao infinito. Foi esse o momento mais bonito do Carnaval, ao menos aos olhos deste módico cronista que pouco viu. Durou um átimo imensurável, e então foi disperso em sádico disparate pela polícia, sob bombas de gás lacrimogêneo. Quem voltou para casa depois daquilo não soube entender se os olhos lhe ardiam pelo gás, ou pela eufórica emoção daquele instante agora eterno.

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Num canto da rua, em meio à euforia, duas mulheres discutiam literatura. Discutiam mais precisamente a última palavra de um verso. "Ai, a Lapa, que lugar lindo pra mostrar a minha...": e então a lacuna que dava lugar à disputa. A primeira defendia, fiel aos seus ouvidos, embora envergonhada de sua própria pudicícia, que a Lapa era um lugar lindo para mostrar a sua graça. A segunda ria de tamanha inocência, afirmava que aquilo era Carnaval e que nenhum verso seria assim tão recatado, que a Lapa só podia ser um lugar lindo para mostrar a sua raba.

A enquete circulou entre os presentes, sem posições conclusivas. Só no dia seguinte, num papel molhado e quase desfeito, revelou-se que a letra tinha duas estrofes com ligeiras variações. A Lapa era um lugar lindo para mostrar tanto a graça quanto a raba. E assim ficaram redimidas a malícia de uma e a inocência da outra, ambas corretíssimas.

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Ouviu por aí que este seria o ano do Xeque-Mate, mas não se convenceu de imediato. Não lhe parecia haver harmonia suficiente na mistura entre rum, guaraná, erva-mate e suco de limão, decerto um tanto antiquada, incondizente com o espírito do Carnaval — que melhor se nutre, como se sabe, de samba, suor e cerveja e uma cachacinha de bolso para acompanhar. Foi, no entanto, visto em pleno bloco sacando o celular, e investindo em dois movimentos decisivos, perfeitos, um da torre e um da rainha. Com isso encerrou o jogo online que travava contra o sócio desde o dia interior, e celebrou como o mais alegre folião aquele improvável xeque-mate, que ao menos até quarta-feira não deixaria de alardear.

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Ficou provado que as vogais é que conduzem a música carnavalesca: as consoantes são de todo indiferentes. Na mesma rua, regidos pela mesma banda, entoando a mesma canção tão conhecida, uns cantavam teteretetê, outros peperepepê, alguns até quequerequequê. O cronista lembrou-se de Cartola e sua recusa a escrever um samba-enredo, coisa mais indicada "para esses meninos de hoje que gostam de escrever lalalá, lelelê e lololô". Cartola estava certo, tudo bem, mas espero que possa nos perdoar, e quem sabe até sorrir ante a imprecisão festiva desses meninos de hoje.

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No sambódromo, ouviu-se um sujeito que dizia que aquilo era de uma absoluta insanidade. Não a festa, a dissipação, a extravagância, a euforia de luzes e cores, e sim aquele extremo rigor artístico e o esmero na execução de cada passo. É tudo tão perfeito de perto, tudo tão admirável. Se uma única companhia de teatro criasse como espetáculo um desfile de Carnaval já seria uma obra assombrosa. Que aquilo se torne uma competição ampla entre dezenas de agremiações, em tantas divisões e cidades, que envolva uma quantidade massiva de pessoas e se repita de tantas e tão variadas formas, é a mais extraordinária arte que este país soube inventar. Mas talvez insanidade fosse o que o sujeito falava, e a euforia de suas palavras.

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Você não pode escrever um anedotário do Carnaval, ela disse. É impossível, é indesejável, é contrassensual. Não se pode subestimar a relação íntima entre o Carnaval e o esquecimento. Porque depois de viver tamanha intensidade é natural que se precise esquecer. E depois de tanto se assombrar e se deslumbrar e se aturdir voluntariamente não se pode senão esquecer. Quantas histórias de fato você tem desses últimos dias que se passaram? Quantas histórias lhe restaram das décadas de carnavais anteriores? O Carnaval e a amnésia são indissociáveis, são aliados perpétuos, são a própria garantia de sua mútua eternidade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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