Julián Fuks

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Opinião

Decreto a morte da morte da crônica, antes que matem o cronista

Imprudente ofício é este, de viver em voz alta. Se já sentia isso o unânime Rubem Braga, só pode ser muito maior a imprudência do cronista menor que sou, cronista aprendiz e desastrado. O caso é que escrevi, tempos atrás, uma pequena crônica apocalíptica sobre o possível fim da crônica, um fim tímido em meio às notícias ruidosas. Ali só o que fiz foi confessar o triste temor de que a crônica esteja abandonando o mundo, o lúgubre receio de que em breve não possamos dispor de sua sinceridade, seu humor, seus sussurros de perplexidade.

Deu-se então o estranho fenômeno a que nunca nos acostumamos, por mais comum que se torne: a incompreensão. Julgou-se que este escriba teria decretado a morte da crônica, e uns tantos se desesperaram, outros se condoeram, outros se revoltaram, alguns se atiraram à cama e abafaram seus rostos com travesseiros puídos, desconsolados — todos eles indistinguíveis em meio à massa de indiferentes, é claro. Cronistas de todo o país foram convocados a se pronunciar, acossados por mediadores dispostos a insuflar polêmicas desgastadas. Cronistas de todo o país condenaram, devotos da justiça, a presunção do homem que quis matar, sozinho, o que sempre foi coletivo e vasto.

Quando ouvi sobre uma pequena brigada de cronistas redivivos que pretendia dar prova de vida aplicando no tal polemista uma sova, achei que era tempo de retomar a palavra: decreto agora a morte da morte da crônica. Promulgo com máxima ênfase tudo o que exigem que eu promulgue: que a crônica segue firme, sadia, robusta, vigorosa. Sei, no entanto, que se trata de um gesto inócuo, pois cronista nenhum jamais teve autoridade para decretar ou promulgar qualquer coisa, nem morte, nem vida, nem ressurreição milagrosa. Digo o que digo com o saber próprio de todo cronista razoável, a consciência de que suas palavras carecem de todo poder, que só alcançam valor em instâncias extraoficiais, nos domínios do lirismo e do assombro.

No fim da crônica fatídica e fatal é que se manifestava seu sentido mais exato: da permanência de todas as abstrações que algum dia tomamos por mortas, como o soneto, a pintura, o romance, o sentido, o sujeito, a utopia, o samba. No caso da crônica como gênero e como hábito, como ofício de sonhadores e vagais, eu sentia que tal permanência criava uma oportunidade rara: na contramão de tanta fúria e tanta pressa, poderíamos constituir uma comunidade de lentos e pacatos, suaves artífices da palavra ponderada. Agora vejo que estava errado, que talvez ainda estejamos um pouco distantes do mundo utópico de cronistas ternos e solidários.

Mas não perco a esperança para um futuro próximo, esperança nutrida pela tradição do gênero que tantos ainda cultivamos, teimosos que somos. Numa crônica empoeirada de Fernando Sabino descubro a força que já teve a amizade entre cronistas, maior, muito maior que suas vaidades. Conta Sabino que ele e Braga costumavam emprestar textos um ao outro quando o prazo faltava ou sobrava o cansaço, que cada um alterava aqui e ali os detalhes de uns parágrafos usados, confiantes no ineditismo que o tempo lhes conferia. Assim publicaram, cada um em seu jornal, "O preço da sopa", "A sopa", "Esta sopa vai acabar", uma única crônica escrita em coautoria entre dois escritores enormes e o tempo esquálido.

Quero me aproximar dos meus colegas, dos meus pares, não quero que me tomem como arauto de suas mortes, como voz sinistra a anunciar o fim ignóbil de todos nós. Quero um dia escrever a Xico Sá, Antônio Prata, Cidinha da Silva, Flávia Suassuna, José Eduardo Agualusa, Milton Hatoum, Joaquim Ferreira dos Santos, Ana Miranda, Ruy Castro, Marcelo Moutinho, Martha Medeiros, Tati Bernardi, Sergio Rodrigues, Ignácio de Loyola Brandão, Gregorio Duvivier, Marcelo Rubens Paiva, Tatiana Salem Levy, Giovana Madalosso, Fabrício Carpinejar, Tiago Germano, Jeferson Tenório, Natalia Timerman, Zeca Camargo, Fred Melo Paiva, Maria Ribeiro, Kalaf Epalanga, quero um dia escrever a cada um de vocês e a tantos outros e pedir que me emprestem uma crônica, porque tenho a mente turva e os dedos cansados e hoje as palavras me abandonaram.

Quem sabe assim nossas vozes se cruzem no espaço, e se emaranhem, e se embaracem, e se façam uma algazarra única de diversos timbres e tons. Uma algazarra de vozes simples entoando palavras diárias, fazendo confissões comezinhas e observações inusuais, mas tão animada que já ninguém se conceda temer o nosso fim, temer a morte dos cronistas e da crônica. Quem sabe assim, escorados uns nos outros, já não nos pareça tão imprudente viver em voz alta.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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