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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mensagem aos solitários desta manhã de sábado

Yaraslau Saulevich/iStock
Imagem: Yaraslau Saulevich/iStock

Colunista do UOL

25/12/2021 06h00

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Penso em vocês, não sei por que penso em vocês. Penso nos que vivem hoje um silêncio denso, os que ouvem os ruídos do próprio corpo, os que abrem a janela para sentir no rosto o vento. Ouço de muitos que, contra toda expectativa, tiveram que manter o isolamento ou se isolar de novo, sintomáticos, apreensivos, alertas, ouço de alguns que vivem dores em destempo. Penso em vocês, nos que hoje dispõem sobre a mesa um único prato, ou menos pratos do que gostariam num dia festivo, penso nos que não erguem brindes a ninguém, nos que extraviam o olhar no vazio ouvindo conversas inexistentes. Não estou só, mas, contra a minha própria expectativa, deixo meu pensamento vagar campo afora até vocês.

Ninguém nunca está só, dizem os incapazes de sentir a solidão na própria pele. Sentem mal, mas dizem bem: é verdade que ninguém nunca está só, que não há solidão em parte alguma, que os outros nos habitam nas profundezas. Repare, veja como seu corpo guarda a memória dos toques alheios que alguma vez recebeu, dos abraços estreitos, dos dedos sobre o antebraço, dos incontáveis choques de bochechas, dos beijos nos lábios. Tudo é alcançável, ainda que em ínfima medida, no instante presente. Veja como a memória age incessantemente: você lê estas palavras e elas evocam de imediato uma infinidade de palavras outras que alguma vez você ouviu ou leu. Não sou eu quem lhe escreve hoje, o mundo inteiro já lhe escreveu.

Ninguém nunca está só porque está em companhia própria. Essa pode ser uma companhia das mais acerbas, a insistir em velhas mágoas, remotas rusgas, ressentimentos bestas. Há uma culpa que gosta de aparecer nos dias de solidão, discretíssima a se esconder entre os cabelos da nuca, uma culpa que encontramos quando ali entrelaçamos os dedos. Sugiro doçura maior numa manhã como esta, sugiro clemência. Não conheço os seus erros, os erros de quem me lê, mas é possível que sejam menores do que você pondera, equívocos banais que todos cometemos, descuidos, distrações, esquecimentos. Não valem tanta atenção nesta manhã, talvez possam ceder lugar a outros afetos, talvez possam abrir passagem às alegrias serenas.

Ninguém nunca está só porque existe o tempo. Se esta manhã já foi ocupada pelo passado, pelos sucessivos corpos que você foi alguma vez, e pelos muitos sentimentos que o acometeram, que fragilidade tem esta manhã, esta solidão. Se já se deixou invadir também pelas palavras que digo, pelas palavras que lhe escreve um sujeito distante e desconhecido, como é permeável esta manhã, como sucumbe ao improvável, ao alheio. Que chance terá esta manhã contra o futuro, contra o vento que entra pela janela e tudo arrasta um milímetro, tudo deforma lentamente? Este momento já quase nem existe: sobre ele vão se impor infinitos momentos novos, novos abraços estreitos, o choque sempre renovado das bochechas, e até um beijo novo de lábios que você jamais poderia prever, aposto. O tempo é vasto e aguarda a sua presença.