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Julián Fuks

Ocupar e respirar: sobre as formas de lutar em tempos de isolamento social

Manifestante usa máscara com a frase "Não consigo respirar" - EVA PLEVIER/REUTERS
Manifestante usa máscara com a frase "Não consigo respirar" Imagem: EVA PLEVIER/REUTERS

Julián Fuks

06/06/2020 04h00

Não consigo respirar. Não há nada de banal na frase repetida seguidas vezes por George Floyd enquanto era sufocado até a morte por um policial. E, ainda que deva ser ouvida com intensidade máxima em seu sentido literal, tão desesperador, tão atroz, é impressionante quanto essa frase chega a dizer sobre algo mais vasto, sobre comunidades inteiras, sociedades. Não consigo respirar, lia-se nos dias seguintes em milhares de cartazes espalhados pelas cidades americanas, em protestos antirracistas reprimidos com hostilidade. Não consigo respirar, talvez se lesse no rosto dos que protestavam em São Paulo, Rio, Curitiba, no peito dos que têm tomado as ruas para combater a banalidade de tantos acenos e atos autoritários.

Para respirar, para não se deixar sufocar pelo racismo, pela violência de Estado, pela brutalidade oficial que se manifesta a um só tempo de maneira física e simbólica, tomar as ruas parece ter se tornado uma necessidade. Ocupar é a palavra de ordem fundamental do tempo em que vivemos, ocupar praças, escolas, universidades, prédios abandonados. Ocupar e resistir: todos os movimentos de resistência mais potentes do nosso tempo tiveram essa diretriz clara. E, no entanto, o contexto atípico que nos toma nesta pandemia traz a justa diretriz contrária. Vivemos, então, o paradoxo peculiar que nos rouba o fôlego: temos o desejo de ocupar, sentimos o imperativo de ocupar, mas compreendemos que ocupar se tornou uma impossibilidade.

Não há coincidência, não é por acaso que uma miríade de novos movimentos adotou a prática da ocupação como sua ação política mais enfática. Na atual onda reacionária, no pensamento conservador que irrompeu das velhas famílias e das novas igrejas e tomou de assalto a política governamental, os corpos são os alvos preferenciais - os corpos livres, insubmissos, os corpos em sua diversidade e em seu poder transformador. Atacados, os corpos resistem: fincam raiz nas ruas e impedem o avanço da intolerância, o atropelo da barbárie.

Foi com comoção e fascínio, assim, que tantos acompanhamos esta semana as imagens da infinidade de corpos que tomavam as ruas vazias, que marchavam por espaços desolados. Eram corpos que nos redimiam, que contemplavam nossa sanha de reação e de luta. Mas foi também com preocupação, com um senso de que havia algo de errado - conscientes como estamos de que é preciso ficar em casa, se isolar em domínios privados. Vidas negras importam, ouvimos os gritos dos manifestantes. E, como vidas negras importam, não podem estar submetidas a mais riscos que as outras, e não faz sentido projetar apenas nelas tantos anseios emancipatórios. Ocupar as ruas com corpos emprestados não basta.

Colocam-se assim indagações tão urgentes quanto indispensáveis: o que nos resta fazer quando não podemos tomar as ruas, quando nossa ação mais contundente se faz insensata? Como ocupar espaços e se interpor à barbárie sem usar os corpos, sem estarmos fisicamente presentes, sem a força de nossas pernas e nossos braços?

Para responder essas perguntas, talvez valha lembrar que ocupar é quase sempre um gesto mais simbólico do que prático. Tomar as ruas é preenchê-las de corpos para logo esvaziá-las, em movimento inócuo, devolvê-las à normalidade sem que nada tenha se alterado de imediato. O que se transforma é de outra ordem: é a percepção social, o discurso, a narrativa, o imaginário. Nada nos impede de pensar, então, numa ocupação feita inteiramente de ideias, de palavras. Uma ocupação feita de tudo o que compõe um corpo para além de sua carne, de tudo o que nos faz humanos e nos permite respirar.

Não há resposta fácil. Não consigo aqui inserir dois pontos e abrir uma enumeração sobre as muitas formas eficazes de ocupar sem corpos. Mas tenho pensado muito nos últimos tempos na possibilidade de uma literatura ocupada - ocupada pela política, pelo presente, e por essas vidas e esses corpos urgentes que exigem mudança. Minha imaginação não chega mais longe, mas me pergunto que outros ofícios, que outras práticas cotidianas poderiam se fazer atos de luta, poderiam se tornar espaços abstratos de ocupação.

A ação individual vale pouco ou vale nada, é claro. Vale se for capaz de promover algum contágio, de se propagar e se fazer comunitária: justamente o que almeja toda ocupação das ruas, toda manifestação popular. A resposta não é fácil, e sobretudo não é singular. Se há algo de auspicioso no momento em que vivemos é a percepção cada vez mais ampla de que devemos unir esforços, juntar a força de nossos corpos e palavras contra tudo o que nos devasta. Eis então minha suspeita final: se conseguirmos estar juntos apesar da distância, se isolados nos fizermos uma comunidade, talvez respiremos melhor, talvez não demoremos em ter uma nova narrativa para contar.