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#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Favelado para os boy e playboy para os favela

Rio Spree, em Berlim - Alexandre Ribeiro
Rio Spree, em Berlim Imagem: Alexandre Ribeiro

21/01/2022 13h46

Qual é o seu lugar no mundo? Sua quebrada? Seu condomínio? Você já sentiu um vazio profundo no peito advindo da sensação do não-pertencimento? Nessa coluna #DaQuebradaProMundo nós vamos utilizar da palavra para preencher os vazios.

Essa semana completa um mês que estou de volta à minha quebrada depois de dois anos e meio morando fora. Coincidentemente, nessa semana eu assisti ao filme "O Cidadão Ilustre" na locadora vermelha. Cidadão Ilustre conta a história do escritor argentino Daniel Montavani, vencedor do Nobel de Literatura, que vive na Europa há muito mais tempo do que eu, que vive por lá há 30 anos.

A trama inicial do filme se dá quando o prefeito de Sala, sua cidade natal, decide homenageá-lo com uma Medalha de Cidadão Ilustre, e por conta disso o autor que mora em Barcelona vê uma chance de retornar à região que não visita desde a juventude.

Essa trama argentina-espanhola me pegou de jeito já nos primeiros detalhes por tratar de uma contradição que a coluna #DaQuebradaProMundo carrega fortemente: dois mundos em colapso. Daniel, o personagem principal, tem que voltar para o lugar que o constituiu enquanto pessoa, mas que ao mesmo tempo tem um aspecto de prisão, de gaiola para aqueles que ficaram. E não somente isso, mas um espaço onde o romance e a liberdade daquilo 'tudo que poderia ser' ainda está aberto e existe no âmbito da possibilidade.

Chegando lá, ele confirma as afinidades que ainda o ligam a Salas, assim como as diferenças que rapidamente o transformam em um elemento estranho e perturbador na rotina da cidade. O filme trata de um aspecto muito único de nossa América Latina: a violência por conta da desigualdade social.

Depois que Daniel volta, os moradores locais o tratam diferente pelo fato de ele ser bem-sucedido, mas vão além disso. Eles o colocam em um pedestal por ter se tornado um autor rico. E o dinheiro cria tensões inimagináveis nesse lugar do conflito. No lugar da batalha entre a riqueza e a escassez.

"Favelado para os boy e playboy para os favela". Essa frase ficou ecoando na minha mente ao ver as cenas onde o dinheiro foi o principal gerador de conflitos entre o Cidadão Ilustre e sua comunidade natal. Fiquei refletindo sobre como a máquina de moer pobre consegue fisgar um ou outro, vendendo essa falsa possibilidade de acesso através de um cartão 'exclusive', um atendimento 'personalité'. Que na verdade é só mais um demarcador social. "Nós aqui, vocês lá, cada um no seu lugar" como diriam os Racionais MC's.

O cidadão ilustre me lembrou que por mais que exista uma identidade de quebrada, de ser um morador de quebrada, muito forte no consciente dos brasileiros, existe um aspecto que a desigualdade não é capaz de nos roubar: a nossa singularidade humana. Por mais que eu tenha crescido no bairro onde os moleques e as minas gostam de colar no baile da Torre e tomar Whisky com Gelo de Coco, eu não gosto. Eu gosto de me sentar na pracinha e ler Octavia Butler, de ler Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro. E é muito difícil lidar com o vazio de uma sociedade onde temos a sensação de que somos a minoria. Mesmo quando somos tantos.

Estar andando pelas ruas da minha quebrada depois de ter acessado espaços como a Universidade de Veneza, onde fui convidado para lançar meu livro. O Museu do Louvre, onde conheci as obras de arte mais esplêndidas da minha vida. A feira do livro do Porto, onde vendi meu livro para o Presidente de Portugal... Estar andando por esses lugares e por minha quebrada transborda o rio de um 'Cidadão Ilustre' dentro do meu coração. Por saber que eu me sinto sozinho nessa ponte por entre os mundos, por saber que eu me sinto esperançoso de que é possível trazer muitos irmãos e irmãs para esse mesmo lugar.