Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Toda bolsa de estudos tem um pouco de quilombo
![Alexandre Ribeiro segurando a carta de aprovação da faculdade em uma das mãos, e o seu primeiro romance, ?Reservado?, na outra. - Lucas Sampaio/Divulgação](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/ea/2021/03/11/alexandre-ribeiro-segurando-a-carta-de-aprovacao-da-faculdade-em-uma-das-maos-e-o-seu-primeiro-romance-reservado-na-outra-1615477397765_v2_1170x540.jpg)
Nos meus 14 anos de idade, enquanto fazia uma oficina de DJ na Casa do Hip Hop de Diadema, vi um adesivo colado nos equipamentos do DJ Boby que dizia o seguinte:
"Todo camburão tem um pouco de navio negreiro"
Essa ideia me marcou por uma vida inteira e veio me revisitar há poucos dias atrás, quando recebi a notícia de que eu - um jovem colorido, escritor e favelado - ganhei uma bolsa de estudos integral no curso: "BA in Humanities, the Arts, and Social Thought" na universidade americana Bard College Berlin. Na estreia da nossa coluna #DaQuebradaProMundo aqui em Ecoa queria partilhar e refletir os porquês dessa epifania que tive. Buscar entender o exato momento, que como em um "flashback-dos-incentivos" a frase do adesivo ganhou uma releitura na minha mente:
"Toda bolsa de estudos tem um pouco de quilombo"
"Quilombo" provém das línguas Quimbundo e Umbundo (dos povos Bantu, habitantes da Angola) e pode ter dois significados. O primeiro, na origem dos idiomas, pode ser traduzido como uma "zona habitacional" (um salve pras COHAB!). E em segundo, o que foi adaptado para a história brasileira é o significado "esconderijo na mata". Termo esse que, com o próprio tempo foi reconstruído e pensado como "comunidades autônomas para acolher fugitivos".
Mas o que exatamente um esconderijo na mata tem a ver com uma bolsa de estudos? A resposta não é direta, pois assim como na história do Brasil colorido, nossa vida é puro simbolismo. Em um país que a cada 23 minutos é assassinado um jovem negro, os meus heróis e heroínas me salvaram quando se aquilombaram. Decidiram me esconder na mata da educação.
Para muitos historiadores brasileiros os quilombos foram muito mais do que esconderijos. Foram também uma resistência contra o sistema escravocrata da época e dos dias de hoje. Nos quase quatro séculos de tensões e tretas, os quilombos funcionaram como uma verdadeira válvula de escape - acolhendo, permitindo o culto às religiões de matriz africana e retomando a liberdade - para diluir a violência da escravidão.
Foi combatendo o apagamento histórico que essas comunidades resistiram e continuam vivas. E atualmente, para jovens como eu, um quilombo é apresentado de uma nova maneira: nós somos herdeiros desse legado. Para muito além de um território de acolhimento, de pluralidade, de liberdade, hoje "quilombo" é um simbolismo. Um quilombo mora no peito dos educadores, dos revolucionários. Um quilombo é a casa da esperança.
Tive a vida salva e transformada por quilombolas da selva de concreto. A primeira revolucionária da minha trajetória foi aquela que olhou para os meus textos e me deu nota dez. A inesquecível professora de português do ensino médio, Michelle. Aprendemos literatura com "Fim de Semana no Parque" dos Racionais MC's. Ela nos ensinou a ler poesia nas vidas que também eram nossas.
Logo em seguida, assim que finalizei o ensino médio, tive a perspectiva transformada graças ao trabalho da Amanda Rahra e da Nina Weingrill, que fundaram a Escola de Jornalismo da Enóis. Foi nas aulas da EJ onde ao lado delas e do Fred Di Giacomo e do Vicente Goés que fui incentivado. Um simples "você escreve bem" foi munição para meu rebento e daí nasceu o primeiro conto: "o dia em que minha barriga escreveu um poema". Conto esse que me fez ganhar um prêmio literário e ter o meu primeiro romance publicado.
Tive a vida salva pelas políticas de cotas raciais que me adentraram na UFABC. Tive a vida salva pelo Hip Hop que me fez vender CDs na rua até chegar a trabalhar na Lab Fantasma. Tive a vida salva pelo amor descrito pela Bell Hooks. Um amor revolucionário e que não conhece fronteira, me entregou de peito aberto à minha companheira, Jessica Küttner, e foi assim que um moleque de favela cruzou atlântico por um amor-versado.
Numa trajetória de muito suor, muita sorte e alguns privilégios, o fator determinante para que eu pudesse estar aqui, vivo, é o seguinte: fui fortalecido por meus quilombolas. Nos esconderijos da nossa sociedade a gente se encontrou. Foi usando nossas tecnologias de amor e saberes que "combinamos de não morrer", e seguimos transmitindo o legado.
Receber uma bolsa de estudos no Bard College Berlin é ser #DaQuebradaProMundo. Ser Da Quebrada Pro Mundo é ter noção de que não há melhor maneira de sonhar senão do que de olhos abertos. E sonhar de olhos abertos é ter noção das maldades do mundo, colocar elas no devido lugar, e buscar inspiração na vida e trajetória de nossos quilombolas.
Para transformar essas cruéis estatísticas de camburões negreiros é que nós existimos e exaltamos a importância de nossos quilombos. Para que a gente possa inserir o que quiser e o que couber, em nossas releituras. Para que a gente se insira. Para que a gente ecoe.
"Toda bolsa de estudos tem um pouco de quilombo"
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