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Bianca Santana

Afogar estereótipos com poesias de prazer e cura

Capa do livro "Estado de Libido - ou poesias de prazer e cura", de Carmen Faustino - Isabela Alves
Capa do livro "Estado de Libido - ou poesias de prazer e cura", de Carmen Faustino Imagem: Isabela Alves

30/06/2020 10h43

É muito importante que denunciemos o racismo. Mas a sociedade antirracista que sonhamos precisa ter em seu imaginário mulheres e homens negros em situações de dignidade, plenitude, prazer. Por isso, antes de mencionar o conteúdo de "Estado de libido ou poesias de prazer e cura", de Carmen Faustino, vou falar sobre a capa do livro. Isabela Alves, a Afrobela, mistura estampas, texturas, cores para emoldurar a ilustração de uma mulher preta em estado pleno de prazer.

A expressão da modelo-poeta facilitou o trabalho da artista plástica. O deleite está na cara. Mas os traços arredondados, os búzios alaranjados, o verde fibroso, com os destaques em amarelo, despertam os sentidos todos. Além de cheirar as páginas do livro novinho, dá vontade de morder. Preliminar do que as palavras impressas em cor de terra vão aprofundar no miolo. E a mulher negra de que nosso imaginário social precisa: intelectual, artista — linda — adornada com riqueza e sentindo prazer.

Carmen Faustino escreve poesia erótica há pelo menos 10 anos. Mas desde 2015, essa escrita do prazer se mostrou um caminho de reflexão profunda do ser mulher preta e periférica, quando iniciou com Jennyfer Nascimento e outras autoras da zona sul de São Paulo o Núcleo de Mulheres Negras - O amor cura. Nas rodas de troca e partilha, fortaleceram redes e lutas. Poesia. "A nossa literatura é generosa, nos dá lugar, nos permite estar e nos permite ser tudo que a estrutura do racismo negro para que nunca fôssemos", escreveu Jennyfer no prefácio do livro. "O que queremos ver refletidos em nossos espelhos?", pergunta Jennyfer. Nos poemas de Carmen há águas, autocuidado, tesão, ancestralidade, audácia, magia, gozo. Liberdade. O pessoal que se descobriu antirracista está preparado para aplaudir mulheres negras sendo?

Libertei
Meu sagrado
E rompi as barragens
Do silêncio herdado
Meu prazer
Não está mais
Represado
Que chova
Para que minhas águas
Lavem o ventre
Das antepassadas
Renovação do axé
Para as retomadas
Das futuras e satisfeitas
Rainhas Pretas

Carmen Faustino

O cuidado repleto de referências afro-brasileiras, em cada uma das 127 páginas, é a assinatura da editora Maitê Freitas, da Oralituras. "A editora nasce dessa lacuna e indiferença históricas que o mercado literário hegemônico vem sustentando ao longo do tempo, onde mulheres negras e mulheres indígenas não encontram espaço nem condições para transformarem suas oralituras em livros", escreveu Maitê em um dos textos de abertura da publicação. "Nosso principal horizonte é manter o solo das escritas desses corpos narrativos vivos e acessíveis". Uma editora preta, das tantas necessárias, para que os meios de produção sejam também nossos.

Tive a honra de escrever a quarta capa desse livro que se faz rio. Evoquei Audre Lorde, com o erótico como fonte de poder e informação. Ao ler Carmen Faustino, experimentei o estado de prazer que permite dissolver o ego, a razão, o controle e dá espaço a novas sinapses. Percebi estratégias ancestrais gravadas em nossos corpos, como tesouros escondidos. Senti as gotas-versos que, devagar, vão molhando a culpa e jorrando risos. Vai demorar. Mas nessa toada, um dia, as opressões sociais, raciais e de gênero estarão afogadas. Feitiço.

A live de lançamento de lançamento de "Estado de Libido ou poesias de prazer e cura", de Carmen Faustino, é hoje (30), das 18h às 20h, na página da Oralituras no Facebook.

Flyer de divulgação da live de lançamento do livro de Carmen Faustino - Divulgação - Divulgação
Flyer de divulgação da live de lançamento do livro de Carmen Faustino
Imagem: Divulgação