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CNH 'quente' como a de B. Henrique é vendida na web sem autoescola ou prova

Reprodução/Governo Municipal de Aquiraz
Imagem: Reprodução/Governo Municipal de Aquiraz

Abinoan Santiago

Colaboração para o UOL

16/03/2020 04h00

Destaque do Flamengo, o atacante Bruno Henrique foi flagrado em 29 de fevereiro em uma blitz no Rio de Janeiro com uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH) sem aparecer no sistema. Pouco mais de dez dias depois, a Polícia Civil concluiu que o documento usado pelo jogador era falso.

Conseguir uma CNH duvidosa não parece ser tão difícil, conforme mostra simples pesquisa na internet realizada pelo UOL Carros. Diversos sites oferecem o documento na web.

A promessa é de entregá-lo sem a necessidade de realizar exames médicos ou de passar por autoescola e provas no Departamento Estadual de Trânsito (Detran). O processo, que demora meses, é oferecido de sete a 15 dias. A prática de venda e compra é crime.

O valor do esquema varia de acordo com a categoria. O menor preço é para o documento destinado para pilotar motocicletas, tabelado em R$ 1.200. Para automóveis, é fixado entre R$ 1.400 e R$ 1.600. O maior, de R$ 2.400, é para a categoria E.

O modus operandi dos que oferecem a facilidade é semelhante, independentemente do lugar. A diferença é que alguns se identificam como despachantes com parceiros dentro do Detran e outros como funcionários do órgão. Todos também expõem o número de contato para negociar a CNH. Dos consultados pelo UOL Carros, foram verificados DDD de Minhas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

Como funciona o esquema

Site oferece CNH quente - Reprodução - Reprodução
Sites na web oferecem CNH 'quente' sem a necessidade de fazer autoescola ou prova
Imagem: Reprodução

A reportagem entrou em contato com oito sites. A escolha se deu pela ordem de aparição no Google a partir do uso das palavras "compra de CNH quente".

Em um dos sites, o suspeito disse trabalhar no Detran de São Paulo e que emite CNH "para todo o Brasil sem haver nenhum problema. Documentação 100% original não havendo problemas posteriores. Podendo ser apresentada em qualquer momento".

Em outro, a pessoa se identifica como servidora do Detran do Rio de Janeiro há 8 anos e promete a habilitação por acesso a sistemas que permitem "adição de categoria, retirar infrações de trânsito, renovar sua carteira e comprar (CNH)". Ainda completa: "Não perca tempo com autoescola, aproveitem essa oportunidade".

Já um terceiro site admite que a prática é crime e pede sigilo para a pessoa que busca a habilitação. Neste, em contato com o UOL Carros por mensagem de aplicativo, o suspeito informou que o processo ocorreria pelo Detran de Uberlândia, em Minas Gerais.

"Nenhum vendedor lhe dará a documentação em mãos, por motivo de segurança própria de nossos clientes. Compra e venda de documentação original é crime previsto em lei e tanto quem compra quanto quem vende sofrem a mesma pena. Então sigilo absoluto", diz o texto.

Em conversa por WhatsApp, a reportagem simulou interesse na compra do documento. Todos os supostos fraudadores pedem um valor adiantado com o argumento de que seria a taxa para dar entrada no Registro Nacional de Carteira de Habilitação (Renach), que é pedido de emissão da CNH. Esse preço adiantado variou entre R$ 250 e R$ 300.

Além desse pagamento, ainda são solicitados documentos pessoais, como RG, CPF e comprovante de residência. A partir de um suposto número de Renach é que o comprador acompanharia o processo de emissão do documento, previsto para ser enviado por correspondência para a casa da pessoa em prazos que variam entre sete a 15 dias.

Somente após o recebimento da CNH em casa o comprador deveria depositar o valor restante pelo documento. Tudo isso sem precisar passar por autoescola, exames médicos e provas teórica e prática no Detran.

Negociação

CNH quente - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

As transações entre a pessoa que oferta e a interessada ocorre pelo WhatsApp. Os números de telefone são colocados no próprio site. Nas conversas de simulação de compras, os supostos fraudadores ratificaram ao UOL Carros o modus operandi contido nas páginas que mantêm na web.

Perguntados sobre se teria problema usar as CNH em barreiras policiais ou blitz, houve a afirmação de que o documento seria validado pelos agentes.
"Não [tem problema], segue toda legislação e pode ser apresentada [em barreiras policiais] normalmente", disse o suposto fraudador de Minas Gerais.

"Poderá apresentar em barreiras policiais e trafegar em todo território nacional sem receio", afirmou outro. "Claro que sim. Documento é original e registrado", confirmou outro quando indagado se a habilitação poderia ser apresentada em blitz.

Estão vendendo ilusão, diz ex-diretor de Detran

Consultado pelo UOL Carros, o ex-membro da diretoria da Associação Nacional dos Detrans e ex-diretor-presidente do Detran do Amapá, João Gomes, avaliou que a oferta de CNHs originais tem fortes indícios de serem falsificadas em razão da sistemática que envolve a emissão de uma habilitação no país.

Para conseguir emitir uma CNH original, pelo valor de pouco mais de R$ 1 mil - que é o cobrado por uma habilitação, o esquema teria de envolver: autoescolas, pois as presenças nas aulas são atestadas por biometria; avaliadores das provas teórica e prática nos Detrans pelas correções serem assinadas eletronicamente; e as empresas terceirizadas que emitem os documentos em papel-cédula.

Além disso, não é possível que uma terceira pessoa dê entrada no processo de emissão de CNH para outra, informou Gomes. Somente mediante procuração.

"Um servidor no Detran só tem acesso no setor onde trabalha. A pessoa que trabalha com Renach não tem acesso ao do Renavan, por exemplo. [Para emitir a CNH], não basta mexer somente no Renach, mas também em outros, como no de setor de provas, avaliada por três pessoas que assinam. Como um ex-diretor, digo é humanamente impossível isso pela tecnologia disposta hoje. Teria que ser um esquema muito grande. Essas pessoas estão vendendo uma ilusão", analisou.

Prática pode gerar vários crimes

Segundo o advogado criminalista Osny Brito, tanto quem vende quanto quem compra praticam crime, independentemente de o documento ser original ou falsificado.

O criminalista explica que a simples oferta na internet já configura um crime de estelionato, mesmo sem o recebimento do dinheiro. A pena para esse delito é de reclusão de um a cinco anos, a mesma para o crime de falsidade ideológica, também configurado nessa prática.

Se a CNH for entregue, o suspeito ainda poderá ser denunciado por falsidade de documento público, com pena de dois a seis anos de reclusão.
Caso a pessoa que oferte use do cargo de servidor público, também pode estar praticando corrupção e sofrer um processo administrativo.

"É crime induzir a pessoa a erro mediante fraude para obter vantagem indevida. O cara que está vendendo a carteira comete o crime de estelionato, além disso, também o de falsidade ideológica e documental, pois como é um crime que envolve um documento gerado pelo poder público, e essa pessoa não teria como produzi-lo", ratificou o advogado criminalista Osny Brito.

Já quem compra poderá ser denunciado pela prática de uso de documento público falso, com pena de dois a seis anos de reclusão.

O que dizem os Detrans citados

O Departamento Estadual de Trânsito de Minas Gerais afirmou em nota que "não há indícios de que criminosos que oferecem CNHs em sites ou redes sociais tenham conseguido emitir originais no estado".

"Todo processo de habilitação realizado pelo Detran-MG é validado por meio de verificação biométrica do candidato e auditoria em cada etapa. Os documentos de habilitação são emitidos na sede do Detran-MG, na capital, em local com acesso controlado", completou o órgão, acrescentando que eventuais denúncias são investigadas pela Polícia Civil mineira.

O Detran de São Paulo negou, em nota, que seja possível inserir dados no sistema do órgão para emissão de CNHs originais ou falsificadas sem a realização de todos os procedimentos. O departamento ainda informou que comunicará sobre os sites "à Polícia Civil, por se tratar de estelionato e à auditoria interna para apuração de eventual participação de servidor(es)".

Já no Rio de Janeiro, o Detran afirmou estar "ciente dos casos e, além da apuração interna, já enviou o material à Polícia Civil para a devida apuração criminal".

"Nos últimos dois anos, cinco casos foram encaminhados pela Corregedoria do Detran à Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) para investigação".

O Detran-RJ ainda revelou que um dos sites verificados pelo UOL Carros foi denunciado em 2019 e que uma servidora teve sua foto usada indevidamente para "este fim criminoso". A investigação neste caso ainda continua.