A luta de Ana Ju

Por 3 anos, mãe brigou na Justiça para conseguir remédio para a filha; que só chegou no dia da morte da menina

Lucas Veloso Colaboração para Vivabem, em São Paulo

Febre nos anos 2000, os carros de mensagens paravam as ruas para que todos ouvissem declarações de amor de uma pessoa pela outra. Também por amor, em junho de 2023, Laira Inácio decidiu chamar a atenção usando um desses carros de som, mas, desta vez, o veículo ecoou gritos, lágrimas e um pedido desesperado.

Àquela altura, a filha dela, Ana Júlia Inácio Faria, de 9 anos, estava com câncer em estágio avançado. A menina aguardava há anos a liberação na Justiça para conseguir um medicamento que chega a custar R$ 5 milhões por ano, e que ainda não é disponibilizado pelo SUS (Sistema único de Saúde). A mãe, então, decidiu estacionar um carro de som na Praça dos Três Poderes, em Brasília, para cobrar uma solução para o caso.

De óculos escuros, camisa estampada com a frase "lute como a Ana Ju" e microfone em mãos, Laira passou longos minutos gritando para as autoridades:

"As crianças com câncer no Brasil estão morrendo" e "por que o governo não paga a medicação de crianças com câncer no Brasil?"

Depois disso, finalmente a autorização de compra veio.

Mas já era tarde.

Ana Júlia morreu em agosto de 2023, no mesmo dia em que a decisão judicial que obrigava o plano de saúde a comprar o remédio da menina finalmente saiu.

A demora no diagnóstico

Em 2020, quando Ana Júlia, aos 7 anos, começou a apresentar febre todos os dias, além de dor na lombar que a fazia mancar, a família começou uma saga dolorosa entre hospitais e médicos. Escutaram diagnósticos diversos, como infecção urinária, virose e dores do crescimento.

Até que uma médica pediu a internação da menina para a realização de mais exames. Cerca de 45 dias depois, veio o diagnóstico: neuroblastoma, alto risco, de grau 4, com metástase na medula óssea e no crânio.

O neuroblastoma é um tumor maligno que nasce de células nervosas imaturas, ainda no desenvolvimento do feto durante a gravidez. Segundo informações do Ministério da Saúde, este é o terceiro tipo de câncer mais comum entre crianças —depois da leucemia e dos tumores do sistema nervoso central. Mais de 80% dos casos são diagnosticados antes dos cinco anos de idade.

A doença é de difícil diagnóstico porque, geralmente, há poucos sintomas e que são muitas vezes confundidos com outras doenças.

O oncologista clínico João Wilson da Rocha, do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) da Faculdade de Medicina da USP, diz que dores abdominais, nos ossos, além de prisão de ventre, fraqueza dos membros inferiores, diarréia, febre, perda de peso, anemia e hipertensão estão entre os sintomas mais comuns da doença.

Laira Inácio, mãe da Ana Júlia e criadora do Instituto AnaJu

Laira Inácio, mãe da Ana Júlia e criadora do Instituto AnaJu

Como funciona o tratamento?

O tratamento para cada paciente varia de acordo com a situação: se a pessoa for classificada como de baixo risco, por exemplo, provavelmente será recomendada uma cirurgia local.

Já para os pacientes considerados de alto risco, o tratamento é mais intenso, envolvendo quimioterapia em doses altas, cirurgia, transplante de medula óssea, uso de medicamentos como ácido retinoico e imunoterapia.

De acordo com o oncologista do Icesp, com a dificuldade de se ter o diagnóstico, a maioria das crianças inicia o tratamento já com o câncer em estágio avançado.

Por isso, costumam precisar de quimioterapia de indução, que envolve o uso de medicamentos para reduzir o tamanho do tumor antes de partir para outros tratamentos, como cirurgia ou radioterapia. A tentativa é de controlar o crescimento do câncer antes de mais nada.

Atualmente, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) determina que tratamentos essenciais, como é o caso do neuroblastoma, sejam ofertados pelo plano.

Sem outros tratamentos que funcionam para a doença já mais avançada, a família pode entrar com uma ação judicial para conseguir medicamentos como o betadinutuximabe (conhecido como Qarziba), um dos remédios mais usados no tratamento da doença em pacientes a partir de 12 meses de idade, que já tenham apresentado ao menos uma resposta parcial a tratamentos anteriores.

O Qarziba atua contra a proteína GD2 nas células cancerosas e é dado a pacientes de alto risco após a terapia inicial. As doses do medicamento fazem com que o sistema imunológico ataque as células cancerígenas, ajudando a reduzir e controlar o crescimento do tumor.

A taxa de cura varia devido a vários fatores, mas estudos mostraram benefícios significativos em alguns pacientes.

Para famílias e pacientes, é sinônimo de esperança.

A judicialização da vida

No caso de Ana Júlia, 11 processos foram movidos na Justiça para conseguir acesso ao medicamento desde a primeira quimioterapia da menina. Todos os pedidos foram negados pelo plano de saúde. De maneira geral, Laira conta que o tratamento de três anos com a filha foi muito desgastante.

"Ela gostava muito de brincar, dançar, correr e usar maquiagem. Apesar de tudo, era uma menina muito doce, meiga, sempre tratava todo mundo com carinho. Ela passou por dores extremas, precisava tomar morfina, mas a Ana nunca reclamava", lembra a mãe. "Quero deixar a lembrança dela como uma criança muito doce."

Foi uma luta. Nós tínhamos acabado de cair de paraquedas nesse mundo do câncer. Não sabíamos de nada, o que fazer, para onde correr. Depois, cheguei ao extremo de precisar colocar um caminhão de som em frente ao Ministério da Saúde, em Brasília, para pedir, pelo amor de Deus, que pagassem a medicação da minha filha. Laira Inácio, mãe da Ana Júlia e criadora do Instituto AnaJu

Laira diz que, na maioria dos casos, o alto custo das medicações é o que faz com que os planos de saúde e não aceitem a compra com facilidade.

"São processos que, no caso da vida da criança, ela não poderia esperar, mas infelizmente são lentos", diz Laira. "Conheço mãe que está há quase um ano e espera por uma medicação que não poderia demorar nem 60 dias."

Situação pior entre os mais pobres

Com a desigualdade social no Brasil, a situação fica ainda mais crítica entre os mais pobres. O valor extremamente alto do medicamento praticamente impossibilita que famílias tenham acesso a ele.

Além de tentar obrigar judicialmente a compra pelo plano, muitas pessoas preferem não esperar e abrem vaquinhas para conseguir arcar com os custos.

O caso mais recente que ganhou o noticiário na primeira semana de 2024 foi o de Pedro, de 5 anos, filho da antropóloga Beatriz Matos e do indigenista Bruno Pereira, assassinado junto ao jornalista Dom Phillips no Vale do Javari, em 2022.

Após o diagnóstico de neuroblastoma em estágio 4 do menino, a mãe recorreu a uma vaquinha online para arrecadar R$ 2 milhões para comprar o remédio que auxilia o tratamento. Em três dias, a meta foi batida.

Além dos gastos com a compra do medicamento, muitas mães acabam abandonando o emprego para se dedicar aos cuidados dos filhos no hospital, como foi o caso de Laira, que passou a se dedicar exclusivamente ao tratamento da filha.

Isso cria uma situação financeira difícil, já que não raro o pai acaba se afastando da família durante o tratamento, como afirma Laira.

Além disso, muitas famílias precisam buscar tratamento em outras cidades, ficando sem apoio e recursos adequados.

"A falta de políticas de transporte e assistência agrava ainda mais essa situação, e deixa as mães sem condições básicas, como alimentação adequada para a criança doente. Essas histórias muitas vezes passam despercebidas, revelando uma realidade dura e pouco conhecida", afirma Laira.

Dor transformada em ação

Ainda hoje, Laira acredita que o neuroblastoma não tem a visibilidade que deveria. A falta de conhecimento dos sintomas, por exemplo, aumenta os riscos e diminui a qualidade de vida das crianças diagnosticadas com a doença.

Com o objetivo de aumentar as informações e o auxílio, Laira decidiu transformar a dor do luto em ação, e criou o Instituto AnaJu, uma organização não governamental dedicada a assistir e amparar crianças com câncer e doenças raras.

Uma das principais ações da organização é criar um fundo que permite comprar medicações caras para o tratamento de câncer infantil.

"Acho importante trabalhar para passar informações e também fornecer assistência, como a jurídica. As mães me procuram para indicações de advogados, além da própria ONG entrar na Justiça para conseguir a medicação. Tentamos oferecer apoio de todas as maneiras, todos de graça", diz Laira.

Hoje, as doações sustentam todo o trabalho. Elas chegam de pessoas na internet, amigos, familiares, e de Laira, que coloca dinheiro do próprio bolso para ajudar em algumas situações urgentes.

A própria vaquinha do filho do indigenista Bruno já está encerrada, mas segue online com um pedido: que as pessoas continuem doando, mas agora para o Instituto AnaJu.

Próximos passos

Hoje, como ativista e influenciadora em prol das famílias que lidam com crianças vítimas de doenças raras, Laira acredita que o Brasil tem que articular políticas públicas urgentes para mudar.

"A primeira delas é o acesso à medicação. Isso precisa ser prioridade no país todo, porque na Constituição fala que toda criança tem direito à vida. Então, medicamentos caros não podem ser um obstáculo, né?".

Em fevereiro deste ano, o laboratório italiano Recordati afirmou que submeteu à Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) um pedido para incorporar o Qarziba no SUS —o que é visto como uma grande esperança para as famílias. O pedido segue em avaliação.

A outra urgência seria uma assistência financeira para as famílias. Ela diz que existe o BPC-LOAS (Benefício de Prestação Continuda), do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), mas muitas mães, às vezes, não conseguem o benefício. "Acredito que deveria haver um repasse específico para essas famílias que enfrentam o câncer com seus filhos."

Os cuidados paliativos também estão no discurso de Laira. "Muitas vezes, associamos cuidados paliativos apenas a pacientes terminais, mas na verdade, é um grupo de profissionais que acompanha pacientes com doenças graves desde o início." Isso inclui apoio psicológico e outras formas de assistência, que foram muito escassas durante o tratamento da própria filha.

Não quero outras pessoas vivendo o nosso sofrimento. Laira Inácio, mãe da Ana Júlia e criadora do Instituto AnaJu

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