Fome emocional: até que ponto é aceitável e quando há risco para obesidade

Recorrer a um doce ou lanche para aplacar a raiva ou se sentir recompensado no fim do dia. Quem nunca? Uma pesquisa do Instituto Ipec mostra que 64% dos brasileiros concordam que comer em excesso ajuda a lidar com a ansiedade e o estresse.

De fato, nossos estados afetivos influenciam o comportamento alimentar. Quando a vontade de comer impulsionada apenas pelas emoções surge, tem nome: é a fome emocional.

Em momentos específicos da vida, como o término de um relacionamento, é compreensível que ela apareça. Os filmes até ilustram com o personagem chorando enquanto come sorvete direto do pote.

Isso vai acontecer com todo mundo. O alimento também é afetivo, está relacionado com socialização e conforto de algumas situações. Fernanda Victor, endocrinologista e professora na UFPB (Universidade Federal da Paraíba)

Não existe uma métrica, mas os profissionais ouvidos por VivaBem concordam que existe um comer emocional aceitável, pois os alimentos desempenham um papel além da nutrição.

O comportamento é comum quando:

  • Ocorre diante de emoções intensas;
  • Aparece raramente, em situações pontuais;
  • Envolve sensação de merecimento após um momento desafiador.

Mas quando a fome emocional é frequente, desequilibrada e traz prejuízos à saúde, o alerta acende.

"Se deixo de fazer outra coisa para estar comendo, e isso causa sofrimento e gera culpa, preciso entender o que está acontecendo", diz Ana Paula Ribeiro Hirakawa, psicóloga do Cejam (Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim).

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Sinais de alerta

Se a fome não é fisiológica —sinalizada por desconforto no estômago, que "ronca", e falta de energia—, o alimento não é a solução.

A vontade de comer guiada pelas emoções vira preocupação quando:

  • Há má relação com a comida, com sentimentos negativos envolvidos;
  • A pessoa sente que "o dia acabou" quando o desejo pelo alimento não é saciado;
  • Há culpa ou qualquer desconforto emocional após comer o alimento.

Nessas ocasiões, a fome emocional pode ser confundida com compulsão alimentar, mas há diferença:

Fome emocional: busca prazer e satisfação por meio do alimento e não leva em conta a fome fisiológica. Há vontade exagerada (fissura) de comer um alimento específico e é mais comum o comportamento de "beliscar" pequenas quantidades de comida.

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Compulsão alimentar: caracterizada pelo consumo em grande quantidade, sem preferência por alimento e independente da fome fisiológica. Por exemplo: a pessoa terminou de almoçar, está satisfeita, mas vê que sobrou comida na panela e come mais do que o necessário. Em seguida, vem o sentimento de culpa.

Risco para obesidade

André Serra, 35, percebeu que a fome emocional fazia parte da vida dele quando chegou ao peso máximo de 175 kg em 2021.

Sempre fui muito ansioso, acho que sempre comi porque estava bravo ou triste. Usava a comida para lidar com essas coisas. André Serra

Ele já tinha ouvido falar sobre o tema, mas não havia internalizado o conceito até então. "Comecei a refletir e percebi que na pandemia estava muito estressado, com medo dentro de casa, e engordei 30 kg."

Atuando no mercado financeiro, houve uma época em que André trabalhava 15 horas por dia, até de madrugada, sob a pressão que o cargo demandava. "Ficava estressado, jantava no banco, comia coisas absurdas."

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Imagem: Arte/UOL

A fome emocional é um dos diversos fatores de risco para a obesidade porque leva a uma alta ingestão calórica por meio de alimentos ricos em sal, gordura e açúcar.

São os chamados alimentos hiperpalatáveis, que ativam os mecanismos de recompensa no cérebro e aumentam o nível de serotonina e dopamina, neurotransmissores relacionados a bem-estar e felicidade.

"Alimentos ultraprocessados ativam a parte do cérebro que está mais relacionada ao comer por emoção, a deixam superestimulada e fica complicado diminuir isso", afirma o endocrinologista Fabio Trujilho, vice-presidente da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica).

"Eles podem contribuir para o aumento da inflamação no centro regulador da fome. E quanto mais inflamado ele está, mais diminui a saciedade e aumenta o apetite", completa Fernanda Victor.

Mas é importante lembrar que a obesidade é uma doença crônica causada por múltiplos fatores, como genética, histórico pessoal e influência do ambiente.

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André, por exemplo, sabe que o sobrepeso dele vem desde a infância. Aos 2 anos, já estava fora da curva considerada saudável. Perto dos 10 anos, o número na balança dobrou.

"Não sei em que momento comecei a me considerar obeso, mas sempre fui gordinho", diz. Em 2021, o alerta de pré-diabetes também o assustou, porque ele não queria repetir a história do avô paterno, que perdeu a visão devido a complicações da doença.

Alimentação equilibrada, exercícios físicos e consciência do processo ajudaram André na perda de peso
Alimentação equilibrada, exercícios físicos e consciência do processo ajudaram André na perda de peso Imagem: Arquivo pessoal de André Serra

Foi quando decidiu se alimentar de forma adequada, sem restrições, e praticar exercícios físicos quase diariamente para reverter o quadro e mudar o futuro. Tudo com acompanhamento de profissionais.

"Comecei a pensar na minha velhice, se ia chegar em cadeira de rodas, sem conseguir fazer nada, ou forte, bem e com mobilidade."

Influência do ambiente

Diferentes fatores podem levar à fome emocional, sendo as situações rotineiras as mais comuns. Hirakawa cita, ainda, a relação com a comida construída desde a infância.

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Oferecer um sorvete à criança quando ela está triste em vez de conversar sobre o sentimento pode ser um gatilho se ocorre repetidas vezes. "A sensação de prazer é momentânea, mas a emoção está ali, não deixa de existir", comenta a psicóloga.

Se eu não cuido da emoção, vou repetindo esse ciclo e fica como uma via de escape que pode ser mais forte com o decorrer do tempo. Ana Paula Ribeiro Hirakawa, psicóloga do Cejam

Por isso, Trujilho considera essencial tentar identificar o que faz a pessoa comer mais, se é que isso ocorre, além de apenas tratar o ganho de peso.

"Às vezes, ela não está comendo tanto. Mas hoje, com a correria do dia a dia, ela come rápido, olhando o celular e come sem perceber", comenta.

Tratamento

Manejar a obesidade e a fome emocional demanda a atuação de profissionais de endocrinologia, nutrição e psicologia.

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O ideal, segundo Trujilho, é uma ação conjunta transdisciplinar, em que todos seguem as evidências científicas, os mesmos princípios e conversam entre si.

O tratamento envolve:

  • Trabalhar os aspectos emocionais relacionados à comida;
  • Entender o contexto da comida na vida da pessoa e o que o ato de comer significa para ela;
  • Ensinar uma nova relação com o alimento;
  • Educar a pessoa sobre a obesidade ser uma doença crônica, ainda sem cura e com chance de retornar, pois manter o peso é mais difícil do que perdê-lo;
  • Identificar outros prazeres além da comida;
  • Prescrever medicamentos quando necessário.

André vem aprendendo a lidar com a nova rotina, o novo corpo e os novos prazeres. Além de cozinhar, ele tem como hobby tocar violão e hoje se sente muito bem quando pratica exercícios físicos.

Uma estratégia que ele adotou para não ceder à fome emocional é fazer o teste da maçã.

"Se quero comer algo, penso se eu comeria uma maçã em vez de chocolate. Se não, sei que não é fome, aí não como e tomo água. Se sim, aí como a maçã."

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