'Pediu chocolate': como é a casa que recebe crianças com câncer sem cura

Falar de cuidados paliativos é um tabu. Se os pacientes são crianças com câncer, o assunto é ainda mais velado, mas a realidade existe e bate na porta de dezenas de famílias.

Condicionar o termo necessariamente à morte, no entanto, é errado. Isso porque os cuidados paliativos vão muito além de proporcionar um fim de vida digno para quem, na visão da medicina, não responde aos tratamentos e já não pode evoluir para a cura.

Em uma casa na Vila Carmosina, na zona leste de São Paulo, funciona um espaço destinado aos cuidados paliativos de crianças e adolescentes. O objetivo? Proporcionar bem-estar e assistência para essas pessoas.

Um pedido: chocolate

A cozinheira Sueleide da Silva, de 51 anos, lembra com muito carinho de uma criança que passou seus últimos momentos nas instalações.

"Tinha um menino que, sempre que eu entrava no quarto perguntando o que ele queria comer, nunca olhava para mim, ficava virado. A mãe falava que ele era assim mesmo", diz ela. Mesmo assim, todos os dias, ela fazia seu trabalho com carinho na tentativa de agradá-lo.

Sueleide da Silva trabalha como cozinheira no local
Sueleide da Silva trabalha como cozinheira no local Imagem: Camila Corsini/UOL

Ela mora nas imediações e, todos os dias, almoça na própria casa. Certa vez, Sueleide comprou uma barra de chocolate para comer de sobremesa. De volta ao local, encontrou um enfermeiro desesperado.

"Ele estava procurando chocolate porque esse menino queria. Falei que eu tinha comprado uma barra, e demos para ele. Mesmo diabético, o médico autorizou que ele comesse", lembra.

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Ele comeu, me abraçou e disse que me amava. No dia seguinte, quando cheguei para trabalhar, soube que ele faleceu durante a noite.
Sueleide da Silva, cozinheira

Hospice: uma casa fora de casa

O hospice Francesco Leonardo Beira está a duas quadras do complexo Santa Marcelina, o principal serviço de saúde da região, e recebe pessoas de 0 a 18 anos.

É uma casa tanto para quem olha de fora como para quem está dentro. São três suítes grandes e bem equipadas, sala de brinquedos, cozinha e um pequeno jardim.

A não ser pelas camas, a casa pouco se parece com um hospital. Em uma sala de brinquedos, uma estante lembra que ali vivem crianças que querem ser felizes e brincar: tem cabana, livros, carrinhos, peão. Tudo para ser usado pelos pacientes, seus irmãos ou outros parentes que os visitam ou ficam hospedados com eles.

No quintal, espaço para tomar sol e um tanque com peixes
No quintal, espaço para tomar sol e um tanque com peixes Imagem: Camila Corsini/UOL
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O espaço tem até uma banheira, que tem como função principal a hidroterapia, mas já foi usada para batizado. No acesso às instalações, os limites são mais flexíveis quanto ao número de acompanhantes na internação e aos horários de visita.

A cozinha conta com o trabalho de Sueleide, mas os pais e responsáveis também têm liberdade para cozinhar ou levar comidas com o "tempero de casa" para que as crianças se sintam mais confortáveis.

Se o paciente precisa tomar banho no leito, a família não é excluída desse processo. "A gente não tira essa parte da mãe, a gente agrega ela", explica Angelo Nascimento, enfermeiro paliativo que trabalha no local.

Banheira tem função hidroterapica, mas pode ser usada com outras finalidades
Banheira tem função hidroterapica, mas pode ser usada com outras finalidades Imagem: Camila Corsini/UOL

Sem custo algum para os pacientes, o hospice foi idealizado pela Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer (Tucca), organização sem fins lucrativos, e é mantido em parceria com o Santa Marcelina por meio de doações.

Quem não vai se curar

Sidnei Epelman, oncologista pediátrico responsável pelo hospice, explica que o câncer infantil é diferente do câncer que afeta adultos —apesar de mais sistêmico e agressivo, também responde bem ao tratamento. Ainda assim, não são todos os pacientes que vão se curar.

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Quando você pensa em tratar uma criança com câncer ou um adolescente com câncer, você tem de pensar naqueles que vão se curar e naqueles que não vão se curar.
Sidnei Epelman, oncologista pediátrico

"Tirando o aspecto da cura, esse paciente ainda tem várias demandas de cuidados. Ele vem para nós porque precisa fazer um controle dos sintomas e da dor que ele já não consegue controlar em casa", diz o enfermeiro Angelo.

Essas demandas de cuidado também incluem realizar "sonhos" de quem está hospedado ali. Para algumas crianças, o desejo pode ser comer uma comida diferente do dia a dia —por exemplo, um churrasco. Para outras, encontrar algum jogador de futebol.

"A criança está viva. A criança está no momento de cuidados paliativos porque ela está viva. A única coisa é que a gente sabe é que o fim está mais próximo, mas a vida está continuando", diz Sidnei.

Cuidado multidisciplinar

Dependendo da situação da família, o conceito do espaço pode ser aplicado na própria casa do paciente por meio da oferta de colchões mais adequados, como piramidal ou pneumático, e da assistência de saúde multidisciplinar.

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Mas, para algumas pessoas, oferecer essa estrutura física é uma dificuldade. Os motivos podem ser variados: distância do hospital, tamanho da casa, situação do imóvel, falta de estrutura familiar. É com foco nesses pacientes que o hospice funciona.

Quartos do hospicie são grandes, bem iluminados e equipados
Quartos do hospicie são grandes, bem iluminados e equipados Imagem: Camila Corsini/UOL

"Imagina algumas famílias que moram em lugares, por exemplo, em que dormem cinco pessoas em um quarto. Como é que pode alguém com dor, desconforto e outros sintomas nessa situação?", diz Sidnei Epelman.

No espaço, o paciente pode se consultar com dentista, fonoaudióloga, nutricionista, fisioterapeuta e assistente social na comodidade do hospice.

Mesmo com os serviços oferecidos também no ambulatório, estar internado possibilita essa assistência sem que o paciente precise se privar de um bom sono para sair cedo de casa, porque mora longe, ou expor a saúde fragilizada no transporte lotado.

Controle da dor é o objetivo

A estadia no hospice não é vitalícia. Apesar de não ter um tempo máximo de permanência, a ideia é que o paciente tenha seu quadro estabilizado e volte para casa —isso pode levar poucos dias ou até mesmo meses. E esse ciclo pode ser repetir.

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Vai ter sempre casos em que o paciente já vem um pouco mais debilitado e fica até o óbito. Mas uma parcela deles --e isso a gente entendeu ao longo dos anos-- precisa de um controle melhor da dor e depois consegue retornar ao seu lar.
Angelo Nascimento, enfermeiro paliativo

A equipe multidisciplinar que atende esses jovens entende a importância de a criança estar em casa, no próprio quarto, com seus objetos e bicho de estimação, por exemplo.

"[A internação é para] aquele momento em que a dor está incontrolável, a medicação não tem mais possibilidade de ser mantida em casa", diz Angelo.

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