Com câncer agressivo aos 3, ele virou 'Super Zezé' para aliviar tratamento

No final de 2020, em plena pandemia da covid-19, a psicóloga Flavia Nunes de Moraes Beraldo Cardoso, 46, e o médico Luis Augusto de Faria Cardoso, 41, receberam uma notícia que deixa todo pai assustado ao ouvir: o filho mais novo, José, com apenas 3 anos na época, estava com um tipo agressivo de câncer, o linfoma de Burkitt.

O tumor é um subtipo do linfoma não Hodgkin e aparece com mais frequência em crianças e adolescentes com idade entre 0 e 19 anos —é considerada a terceira neoplasia maligna mais comum nessa fase da vida.

Embora tenha uma boa resposta à quimioterapia, com chances de cura de até 90% quando diagnosticado precocemente, é um câncer conhecido por sua agressividade, ou seja, costuma evoluir muito rapidamente.

Por isso, quando os resultados dos exames deram positivo, a família, que mora em Minas Gerais, arrumou tudo em literalmente algumas horas e seguiu para São Paulo em busca de tratamento para o garoto. "Não havia tempo a perder, foi o que nos disseram", relembra Flávia, bastante emocionada.

Uma dor de barriga incômoda

O drama da família começou em novembro de 2020, quando José, um menino que até então se mostrou muito saudável, passou a reclamar de dor de barriga. Flávia achou que era algo simples, como uma indigestão, e fez massagem para acalmá-lo. Durante a noite, a dor piorou e ela intensificou os carinhos. "Foi aí que eu notei uma massa dura na barriga dele", conta.

Flávia então chamou seu marido, Luís, que é médico, e avisou que tinha algo estranho com o menino. "Na hora, não pensei em câncer", afirma o pai de José. "Mas nos organizamos para realizar um ultrassom na clínica do meu cunhado, Hélio César, que é radiologista, na manhã seguinte", conta.

No ultrassom, as coisas iam normais até que o especialista começou a fazer perguntas "estranhas", nas palavras de Flávia. "Me pediram para sair da sala, e foi aí que eu entendi que poderia ser algo sério", lembra. Mas ela ficou, e o casal recebeu a notícia de que aquilo poderia, sim, ser um tumor maligno.

Por terem familiares e amigos médicos, Flávia e Luís conseguiram realizar mais exames no menino no mesmo dia. Até um PET-CT foi feito. "Tudo indicava que era um linfoma, mas ainda estávamos otimistas, aguardando os resultados e esperando algo para contradizer nossa intuição", afirma Flávia.

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Enquanto esperavam o resultado da biópsia, Flávia e Luís entraram em contato com a oncologista pediátrica Maria Lúcia Lee, especialista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo. "Ela nos mandou ir para São Paulo naquele mesmo dia, pois provavelmente era um linfoma de Burkitt e o crescimento era muito rápido. Nós não poderíamos perder tempo", conta a psicóloga.

Flávia e Luís precisaram se mudar em questão de dias para tratar o câncer de José
Flávia e Luís precisaram se mudar em questão de dias para tratar o câncer de José Imagem: Arquivo pessoal

E assim foi feito: em questão de poucas horas, a família arrumou as malas e seguiu para o hospital. Todos, menos uma: Isabella, de 6 anos na época, ficou para trás, na casa dos avós.

"A nossa vida virou de cabeça para baixo em apenas quatro dias", conta Luís, também emocionado.

Tratamento, dificuldades e "Super Zezé"

Chegando em São Paulo, Flávia se internou no hospital junto com José. Luís, por ser médico, tinha acesso "livre" como profissional da saúde. O tratamento inicial foi feito com uma dose de ataque de quimioterapia para interromper a evolução do tumor. Com essa estratégia, o câncer reduziu em 70% já nos primeiros dias.

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Foram 18 dias isolados de todos, já que a pandemia da covid-19 ainda não havia terminado e, por causa da quimioterapia, José estava vulnerável a doenças infecciosas. Isso, aliás, foi uma grande fonte de estresse, já que o casal tinha muito medo de infectar o menino com o coronavírus e causar um dano irreparável.

A esse receio, claro, somaram-se outras questões. Flávia e Luís precisaram alugar um apartamento na cidade para ficar em casa com o menino e reduzir os riscos de pegar covid no hospital. Ambos precisaram parar de trabalhar, então, contaram com a ajuda financeira de familiares. Caroline, a irmã mais nova de Luís e que também é médica, teve uma participação importante ao ficar com a filha mais velha, Isabella, quando ela se juntou à família, enquanto os pais seguiam o tratamento no hospital com José.

Mesmo assim, o desgaste emocional que a doença provocou na família também impactou a menina. "Ela, uma criança também, teve crises de ciúme, chorava muito, dizia que eu era feia", relembra Flávia, que ainda viveu um drama pessoal: no mesmo período, uma tia muito querida estava internada com câncer no mesmo hospital e acabou falecendo sem que elas pudessem se encontrar pessoalmente.

Em solidariedade ao filho, Luís raspou o cabelo junto com ele quando os fios começaram a cair por causa da quimioterapia
Em solidariedade ao filho, Luís raspou o cabelo junto com ele quando os fios começaram a cair por causa da quimioterapia Imagem: Arquivo pessoal

No meio de tudo isso, José seguia com as sessões de quimioterapia. "Quando o cabelo começou a cair, eu não estava preparada", emociona-se Flávia. Para apoiar o filho, Luís raspou a cabeça junto com ele e manteve-se careca até o tratamento terminar.

Embora tenha sentido poucos efeitos colaterais, José ainda viveu algumas dificuldades comuns nesses casos. Teve episódios de febre, precisou passar por uma transfusão de sangue e por sessões com dentistas para aplicar laser e aliviar as úlceras na mucosa da boca.

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Atento ao filho, Luís chegou ao ponto de medir o pH dos alimentos que José ia comer, para evitar que alimentos ácidos agravassem as feridas na boca. A atitude chamou a atenção de toda a equipe do hospital pela dedicação do médico. Mas tanto conhecimento técnico teve um preço para ele. "Eu me sentia muito pressionado a ser forte e não queria que nada desse errado", afirma.

Vivi um dilema entre ser médico e ser pai. E decidi ser pai. Isso me aproximou ainda mais da minha família

Para tentar aliviar a situação, como é de costume, a equipe da oncologia pediátrica do hospital usava brinquedos e criava histórias para tornar o tratamento mais lúdico para o menino.

Por isso, quando os pais decidiram investir nas histórias de super-herói para criar um ambiente mais leve, os profissionais não pensaram duas vezes em transformar o espaço em "escola de super-heróis". Assim, quando o braço inchava por algum motivo, por exemplo, a explicação é que ele estava virando o Hulk.

José se transformou em 'Super Zezé", brincadeira que servia para aliviar o estresse do tratamento no hospital
José se transformou em 'Super Zezé", brincadeira que servia para aliviar o estresse do tratamento no hospital Imagem: Arquivo pessoal

"José virou então o 'Super Zezé', com broches comprados pela equipe e até uma capa que ele ganhou de presente da médica", relembra sua mãe. Segundo a família, o menino enfrentou tudo com coragem e sempre muito amoroso com todos.

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Alta e nova vida

O fim da quimioterapia significou que a família poderia, enfim, voltar para casa e retomar a vida. José conseguiu entrar em remissão para o linfoma ainda em 2021 —mas as feridas e o abalo psicológico permaneceram na mãe. "Eu queria que ele seguisse em acompanhamento semanal e ficava neurótica, qualquer coisinha eu já me assustava pensando no pior", conta a psicóloga.

Hoje com 6 anos, José precisa ser acompanhado por mais 7 anos para garantir que a doença não retorne, além de avaliar quais possíveis consequências a quimioterapia deixou em seu corpo ainda tão pequeno —já que há o risco para problemas cardíacos e até para a fertilidade do menino, no longo prazo.

Luís (pai), Isabella (irmã), José e Flávia (mãe) atualmente; o menino está em remissão desde fevereiro de 2021
Luís (pai), Isabella (irmã), José e Flávia (mãe) atualmente; o menino está em remissão desde fevereiro de 2021 Imagem: Arquivo pessoal

Foram momentos difíceis pelos quais passamos, e acredito que ninguém entende. É preciso estar na nossa pele, sentir o que sentimos, para saber o que foi que enfrentamos Flávia

Entenda a doença

O linfoma de Burkitt é um tipo de linfoma não Hodgkin, que acomete em sua maioria crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos.

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Por ser bastante responsivo à quimioterapia, esse tipo de câncer tem altos índices de cura, passando dos 90% quando diagnosticado precocemente e com o uso de quimioterapia intensificada, afirma Guilherme Perini, médico hematologista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

No entanto, ele é considerado também um câncer agressivo, já que tem um crescimento considerado rápido, afirma o especialista.

Segundo ele, além do crescimento acelerado, o tumor pode causar febre e dores abdominais.

Ao todo, José fez quatro ciclos de quimioterapia. "Ele teve remissão completa da doença ao final do tratamento, em fevereiro de 2021", afirma Fabricio Tera Romagnol, oncologista pediátrico da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo, que fez parte da equipe que cuidou do menino.

Romagnol, que trabalha com pacientes pediátricos na oncologia, afirma que é sempre muito difícil ver crianças nessa situação —e que, por isso mesmo, sempre se apega às chances de cura deles.

"Na maioria das vezes, eles não entendem a gravidade da doença e só querem brincar. Nós usamos isso para tornar todos os procedimentos mais leves", diz.

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José recebia picolés para aliviar os efeitos da quimioterapia em seu organismo
José recebia picolés para aliviar os efeitos da quimioterapia em seu organismo Imagem: Arquivo pessoal

O médico lembra ainda que a família de José sempre foi muito dedicada e confiou na equipe médica o tempo inteiro.

Pode parecer bobagem, mas a família que anda junto com os médicos sempre ajuda demais no tratamento Fabricio Tera Romagnol, oncologista pediátrico

O prognóstico de José não poderia ser melhor, de acordo com o médico. A recidiva (reaparecimento) do linfoma de Burkitt costuma ocorrer no primeiro ano após o tratamento; mas José já completou dois anos e nove meses sem nenhum sinal do câncer. "Ele provavelmente não vai lembrar de nada do que passou, e é melhor que nem lembre mesmo", acredita.

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