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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


'A vida como ela é': como é morar em casa para pacientes de saúde mental?

João Leite Ribeiro convive com a esquizofrenia há 25 anos e mora em casa terapêutica, residência para pacientes de saúde mental - Divulgação
João Leite Ribeiro convive com a esquizofrenia há 25 anos e mora em casa terapêutica, residência para pacientes de saúde mental Imagem: Divulgação

Do VivaBem, em São Paulo

11/05/2023 04h00

Em uma rua do bairro do Pacaembu, zona oeste da capital paulista, há uma casa com 12 moradores de idades variadas, de adolescentes a idosos. Eles não são da mesma família nem se conheciam antes, mas compartilham uma rotina do café da manhã ao jantar, além dos conflitos de qualquer convivência.

Essa é uma residência terapêutica, onde pacientes de saúde mental vivem. É comum que eles irem para lá ao sair da internação de uma clínica psiquiátrica, ou quando não têm o suporte necessário da família ou de cuidadores no seu dia a dia. A ideia é criar estratégias para lidar com a vida de maneira melhor, assim como um exercício para desenvolver autonomia.

Um dos moradores é João Leite Ribeiro, 52. Ele descobriu ter esquizofrenia aos 19, mas convivia com os sintomas desde o início da adolescência. Chegou à casa no ano passado, após a pandemia intensificar rusgas na família. Foi nessa época que teve o primeiro surto, uma das principais características de seu transtorno. Até então, tinha delírios, como acreditar ser perseguido. "Fui pego de surpresa, inclusive. Foi a primeira vez que perdi a consciência do que estava fazendo", lembra.

João conversou com VivaBem em uma quinta-feira, um dos dias em que ministra uma oficina para os colegas da casa —a outra oficina é às terças. Nos encontros, fala principalmente sobre a filosofia, um de seus maiores interesses. "Gosto de filosofia e isso fez uma diferença na minha vida, são ideias que me nortearam muito."

Em uma mesa grande, a maioria dos moradores se senta para pensar sobre temas diversos. Sem pauta definida, João dá o pontapé para que todos construam uma narrativa coletiva. Naquele dia, falaram sobre o que é delírio e o que é real, os estigmas contra as doenças mentais e a solidão. Repercutiram ainda a fala do presidente Lula sobre pessoas com os transtornos terem "desequilíbrio de parafuso" —o político se desculpou depois.

Os cuidados no espaço também incluem assumir uma tarefa e trabalhar nela como um projeto de vida. João escolheu o teatro. Autor de dois livros sobre filosofia, usou essas referências, a experiência de seis anos como palestrante e os 33 anos tendo esquizofrenia para criar um monólogo, chamado "Ninguém". Trabalhou nele por meses e já fez apresentações na casa, em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e para universitários. Ele se prepara para mostrá-lo a uma plateia mais ampla neste sábado (13), a partir das 19h, no Teatro Centro da Terra (SP).

Como é a casa

Na casa, João vive em um quarto para três pessoas. Por enquanto, sem companhias. Há ainda opções de dormitórios para duas pessoas ou só uma.

As mensalidades começam em R$ 15 mil e variam segundo o perfil de cada paciente, suas necessidades de saúde, medicação e número de pessoas no quarto.

Cada um dá pessoalidade ao dormitório. É possível levar o que quiser para lá e a organização fica por conta da pessoa. Com bom humor, um dos moradores mostrou a bagunça total no seu quarto. Foi a bares com amigos naquela semana e não conseguiu arrumar seu dormitório.

residência terapêutica - Divulgação - Divulgação
Quatro para três pessoas, como o ocupado por João, na unidade da residência terapêutica em São Paulo
Imagem: Divulgação

Alguns moradores podem sair e circular sem restrições. Outros precisam de um suporte maior e só saem acompanhados. Isso é mediado pela família, junto à equipe de atendimento. Na casa, os comportamentos e humor são observados e avaliados. O processo é sutil, mas permanente. A ideia é entender o que ali pode prejudicar a pessoa: sono de mais ou de menos, estresse, isolamento social e por aí vai.

Enquanto descemos e subimos pelos andares da residência, o morador do quarto bagunçado conflita sobre o estado do banheiro após outra pessoa tomar banho. São desafios de convivência inerentes a qualquer lugar, explica a terapeuta ocupacional Solange Tedesco. Ela é como uma síndica, atenta às relações e aos conflitos do espaço.

"Digo que aqui é a vida como ela é. Às vezes, a gente es mais tolerante a um idoso, às vezes menos. Às vezes mais tolerante ao sintoma de alguma condição, à característica de alguma pessoa e às vezes menos", diz Tedesco, diretora da SIG - Residência Terapêutica de São Paulo.

Espírito do pessimismo

Ter contato com outras pessoas da casa é o diferencial para João. Ele já foi internado em clínicas psiquiátricas no passado, inclusive de forma compulsória e teve que usar algemas. "Internar em um hospital psiquiátrico é um isolamento profundo, porque você não encontra colegas. Você é único lá dentro."

João já tentou suicídio em fases críticas da doença. Ao longo da vida, diz que o amor pela filosofia foi um resgate diante dos momentos ruins. E se afastar do "espírito do pessimismo", conta, é que o ajuda a crer na sua melhora e em alcançar o que deseja. "Para mim, a pessoa com esquizofrenia fica muito vulnerável a espíritos maus. O pior de todos é o espírito do pessimismo, que não te deixa fazer mais nada."

Segundo ele, o silenciamento causado pela doença é grande e isso o deixava mais suscetível a pioras.

Eu fiquei vulnerável com o diagnóstico da esquizofrenia, porque a partir dali foi como uma desvalidação da minha palavra. Se eu discuto com alguém, não tenho razão e nunca vou ter, porque o esquizofrênico sou eu. E aí o espírito do pessimismo vem. João Leite Ribeiro

Ele sente que a pessoa com esquizofrenia é tratada como alguém sem pensamento racional e colhe exemplos disso ao longo da vida. "Quando fui internado, com uns 20 anos, me cobriram com uns quatro cobertores. Eu estava tão habituado a só fazer o que me mandavam, que eu só fui tirar as cobertas uns quatro dias depois", lembra.

Fiz acompanhamento com um mesmo psiquiatra por 25 anos. Eu tomava um remédio que inibiu orgasmos por 25 anos, e o psiquiatra falava que eu mentia. O silenciamento foi o pior da minha vida. João Leite Ribeiro

As crises não desaparecem de uma hora para outra, afirma. Mas, no seu caso, a fé e os estudos da Bíblia o fortaleceram.

esquizofrenia; personalidades; transtorno mental - iStock - iStock
Controle dos sintomas é essencial para pacientes de saúde mental terem uma vida funcional
Imagem: iStock

Qual é a hora de sair de uma casa terapêutica?

Essa resposta é individual. Estadias longas e curtas são comuns. Algumas pessoas recorrem aos espaços para auxiliar em crises pontuais. Outras precisam do apoio dali por anos.

Entendemos a residência terapêutica como um processo que pode ser transitório ou permanente, no tempo da necessidade de cada morador, familiar, meio sociocultural e essa inter-relação. É uma forma de habitação e de cuidado, onde o compartilhamento de experiências e a presença constante de uma equipe especializada possibilitam um estilo de vida. Solange Tedesco, terapeuta ocupacional

João planeja sair da casa, mas ainda não sabe quando. Está feliz com a vida se estruturando. Hoje, diz viver com "a mente vazia", seguindo o tratamento e mantendo uma rotina com propósitos. Um de seus maiores sonhos é conquistar a independência financeira.

É difícil você em um almoço com amigos, eles convidam alguém e te apresentam. Aí você não trabalha, não tem namorada, não tem casos amorosos, não tem nada para dividir e compartilhar com as pessoas. É sempre constrangedor. João Leite Ribeiro

Boa parte dos transtornos mentais não tem cura, incluindo a esquizofrenia. Mas isso não quer dizer que sejam totalmente limitantes. A grande barreira é validar os sintomas dessas pessoas para chegar ao diagnóstico, além de acessar tratamento de qualidade. O controle dos sintomas permite melhor qualidade de vida e, por consequência, uma rotina com tarefas e obrigações.

Para falar sobre a recuperação e o que considera como cura, João se apega mais uma vez à filosofia: "Cura para mim é amor fati, é gostar do que se tem". O conceito, de Nietzsche, é interpretado como "amor ao destino" e prega sobre aceitar a vida e o seu destino como eles são.

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.