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Com câncer, ela recebeu 65% do fígado da filha em cirurgia inédita no país

Elizabeth com a filha Julia, que doou 65% do fígado para a mãe - Arquivo pessoal
Elizabeth com a filha Julia, que doou 65% do fígado para a mãe Imagem: Arquivo pessoal

Danielle Sanches

Colaboração para VivaBem

28/04/2023 04h00

Há seis meses, a microempresária Elizabeth Maria Kastrup Silva, 54 anos, passou por uma cirurgia inédita no Brasil: um transplante de fígado como parte do tratamento de um tipo raro de câncer, nos ductos biliares, o colangiocarcinoma intra-hepático.

Ela descobriu que estava com o tumor em junho de 2022. Inicialmente, os médicos pensaram em fazer a remoção parcial do órgão, mas o tumor já havia invadido vasos sanguíneos importantes e o procedimento seria muito arriscado.

Para agravar a situação, ela tinha uma cirrose causada pelo vírus da hepatite C, que permaneceu em seu organismo por mais de 20 anos mesmo após diversos tratamentos.

"'Mexer' no meu fígado para tratar o tumor daria problema demais, era arriscado. O ideal seria ter um novo", conta ela.

Porém, a lei não permite que pessoas com colangiocarcinoma entrem na fila para receber a doação de um fígado "inteiro" (de doador falecido).

A solução foi um transplante com o doador vivo, que cede parte do fígado e não tem prejuízos, pois o órgão é capaz de se regenerar sozinho. Nesse caso, a filha mais velha de Elizabeth, Júlia, de 26 anos, foi quem se ofereceu para doar 65% do fígado para a mãe.

Elizabeth com a filha Julia, que doou 65% do fígado para a mãe - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"O transplante reduziria o risco de complicações no fígado de Elizabeth e traria uma perspectiva de vida mais longa para a paciente", explicou Eduardo Fernandes, médico-cirurgião hepatobiliar do Hospital São Lucas Copacabana, no Rio de Janeiro, que realizou a cirurgia. Segundo o especialista, essa opção de tratamento para o colangiocarcinoma intra-hepático é considerada recente no mundo todo e, até então, nunca havia sido feita no Brasil.

O médico trouxe a técnica dos Estados Unidos, mais especificamente da Universidade do Texas. Pesquisadores da universidade e do Houston Methodist J.C. Walter Jr. Transplant Center conduziram um estudo com pacientes com o colangiocarcinoma intra-hepático.

No total, 12 indivíduos foram tratados, com seis deles recebendo o transplante. A taxa de sobrevivência foi de 100% depois um ano e 83% após cinco anos, com 50% dos pacientes que fizeram a cirurgia vivendo sem recidiva do câncer por mais de cinco anos.

Promissores, os resultados foram publicados em 2018 na revista científica The Lancet Gastroenterology and Hepatology.

Como é e quem pode fazer o tratamento

Para ser candidato ao transplante nesses casos, o paciente precisa ter o tumor apenas no fígado —isto é, não pode haver metástase, que é quando o câncer já se espalhou pelo corpo— e estar com um câncer considerado inoperável, explicou Fernandes.

Primeiro, o paciente passa por uma rodada de quimioterapia para garantir que o tumor diminua ou até seja "eliminado".

Fernandes e a equipe que acompanha Elizabeth decidiram aplicar também a imunoterapia para reforçar o tratamento específico do câncer antes, de ela passar pelo transplante.

Medo pela filha

Elizabeth com a filha Julia, que doou 65% do fígado para a mãe - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Elizabeth conta que, no começo, temeu por Julia.

"Ela, bem de saúde, se arriscando por mim, foi realmente angustiante", lembra. "Deixei claro para ela e a irmã que aquela luta era minha, não era responsabilidade delas", conta Elizabeth.

"Mas Julia me justificou sua escolha dizendo: 'Mãe, a minha vida sem você não tem razão'", diz. "Ela tinha certeza de que ia dar certo"

No dia da cirurgia, familiares e amigos se reuniram no hospital para apoiar mãe e filha. A tensão, obviamente, era enorme.

"Luiza, minha filha mais nova, ficou preocupada comigo e com a irmã mais velha. Foi duro", relembra.

De acordo com Fernandes, a cirurgia de Elizabeth foi bastante complexa, já que foi preciso remover a veia cava —um dos principais vasos sanguíneos do corpo e que passa por trás do fígado— e substituí-la por uma prótese.

"Com isso, implantamos parte do fígado da filha diretamente na prótese, o que é um procedimento de altíssima complexidade", avalia o especialista.

Ao todo, Julia ficou 13 horas na mesa de cirurgia para ter parte do fígado removido, enquanto a operação da mãe durou 10 horas. "Não senti medo, fui em paz. Eu tinha certeza de que daria certo", conta.

Durante o procedimento, foi constatado que o tumor de Elizabeth estava 70% necrosado. "Consideramos o transplante um sucesso e a expectativa é que a operação traga uma perspectiva de vida mais longa para a paciente, com ganho de sobrevida global", conta Fernandes.

Por enquanto, os exames de Elizabeth estão normais e ela já recebeu alta. O acompanhamento agora é feito como um monitoramento de rotina para checar se o câncer irá voltar ou não.

A esperança, no entanto, é que, assim como pacientes que receberam novos fígados nos estudos americanos, o tumor não retorne a crescer.

Para Elizabeth, a chance de poder fazer história como a primeira paciente no Brasil a passar por um tratamento tão inovador e complexo é considerada "uma benção". "Graças a Deus, isso estava no meu caminho, na minha história. Eu sou só gratidão por tudo."