Topo

Longevidade

Práticas e atitudes para uma vida longa e saudável


Só agora: cuidados paliativos viram obrigatórios nos cursos de medicina

iStock
Imagem: iStock

Juliana Dantas

Colaboração para VivaBem

09/01/2023 04h00

Um passo importante para a saúde do brasileiro foi dado: os estudantes de medicina entrarão em contato com os cuidados paliativos ainda na faculdade, os conceitos da disciplina agora são obrigatórios nas graduações de medicina. Sim, só agora.

Na prática, isso significa que os futuros médicos terão mais condições de administrar pacientes com diagnósticos graves, como câncer, Alzheimer, Parkinson ou mesmo sequelas agudas de covid-19.

A resolução foi homologada pelo CNE (Conselho Nacional de Educação), do MEC (Ministério da Educação), em 3 de novembro de 2022, e entrou em vigor em 1º de dezembro. Era uma batalha antiga e foi vista com bons olhos pelos especialistas.

Gabriela Hidalgo, médica de família e comunidade e também paliativista, está em programas governamentais do Hospital Israelita Albert Einstein e é coordenadora da residência de medicina em família e comunidade da Unifesp. Ela afirma que a novidade dos cuidados paliativos chegarem obrigatoriamente à graduação de medicina já começa a gerar impacto.

"Essa medida já inspirou um dos trabalhos de conclusão de curso do grupo de residentes que se forma agora na Unifesp", conta. "Estamos vivendo um momento muito propício para essa mudança de mentalidade coletiva. E, sem dúvida, a mudança no currículo da medicina é um marco muito importante que contribui para isso", conclui.

Procurado pela reportagem, o MEC não se manifestou —ainda não há detalhes sobre o prazo para as universidades apresentarem um planejamento, se haverá um período de implementação e nem como será o diálogo entre as escolas e o poder público.

Há gargalos a serem sanados

  • Apenas 14% das faculdades de medicina no Brasil já têm cuidados paliativos na grade curricular, aponta uma pesquisa da médica Andrea Castro, docente da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e integrante do Comitê de Graduação da ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos).
  • Em números absolutos, dos 315 cursos pesquisados, apenas 44 já pautam a prática em sala de aula; destes, 57% são instituições de ensino particulares.
  • Onde já há cuidados paliativos na graduação, os conteúdos programáticos passam, em linhas gerais, por bioética, dor, oncologia, doenças crônicas, finitude, tanatologia (estudo científico da morte), geriatria e senescência (processo natural de envelhecimento).
Cuidados paliativos - iStock - iStock
Imagem: iStock

Segundo o médico Douglas Crispim, presidente da ANCP e também integrante da WHPCA (The Worldwide Hospice Palliative Care Alliance), o que se espera é que, ao ter contato com conceitos dos cuidados paliativos, os médicos saiam da graduação sabendo fazer avaliações adequadas de prognósticos e das fases de cada doença, além de terem condições para traçar um planejamento de cuidados proporcionais à demanda, desenvolverem boas competências de comunicação e saberem controlar os sintomas de cada pessoa em cada diagnóstico.

O primeiro desafio é que nós não temos professores suficientes de cuidados paliativos hoje. Os cuidados paliativos vão acabar sendo ensinados por pessoas que não têm formação ou não são tituladas, com o risco de ter um grande viés de preconceito. Douglas Crispim

O que são cuidados paliativos?

O conceito ainda gera muita confusão e, justamente por causa da falta de compreensão, é alvo constante de discriminação —até mesmo entre as equipes de saúde. Para Crispim, a novidade tende a interromper esse ciclo: "Todo estigma que a gente tem vindo de profissionais de saúde seria sanado ainda na faculdade, para esse preconceito não ser reproduzido fora".

Por definição da OMS, os cuidados paliativos são uma abordagem multidisciplinar que deve ser ofertada no momento do diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida. Ou seja: é direito de quem está em fim de vida, mas não só. Toda enfermidade grave ou crônica que coloque a vida do paciente em risco já é elegível para receber cuidados extras.

Pelo caráter multidisciplinar, o paciente não é visto apenas como um órgão a ser curado, mas como uma pessoa a ser cuidada. Como sabemos, receber uma notícia de uma doença séria desestabiliza a todos: paciente, família e amigos. Então, a soma de esforços é bem-vinda.

Médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, psicólogos, psiquiatras, nutricionistas e capelães são só alguns dos profissionais necessários nessa estrutura.

  • Essa equipe se une e dá protagonismo ao paciente.
  • Oferece ferramentas para que as melhores escolhas sejam feitas, sempre visando o custo-benefício de cada intervenção (e não financeiramente falando).
  • Essa pesagem de prós e contras é constante e busca entender qual o ganho em qualidade de vida em cada bifurcação do tratamento.

Nos cuidados paliativos, há dois conceitos básicos norteadores que ajudam a compreender como são feitos os trabalhos: o de dor total e o de ser biográfico.

  • A concepção de dor total leva em conta que não necessariamente apenas o corpo físico sentirá os impactos da doença e do tratamento, mas também aspectos psicossociais, espirituais, culturais, familiares, profissionais e até financeiros.
  • Já o de ser biográfico visa preservar a identidade de quem está sendo cuidado, com seus gostos, preferências, valores e limites de dignidade. Trata-se de uma pessoa com uma personalidade individual e complexa, que certamente está atravessando um dos momentos mais desafiadores da vida.

Uma boa notícia

Ao contrário do que o senso comum repete, os cuidados paliativos não são "para morrer" ou para quando "não há nada mais a se fazer". Eles não são, em si, a má notícia; são um direito que deve surgir a partir de um diagnóstico grave.

empatia; médico; paciente; hospital - iStock/Getty Images - iStock/Getty Images
Imagem: iStock/Getty Images

O acesso aos cuidados paliativos deve ser almejado como forma de ter mais conforto, com menos manifestações da enfermidade e dos efeitos colaterais de medicações.

Os cuidados paliativos não são excludentes, mas, sim, aliados do tratamento curativo. Atuam, por exemplo, em minimizar ou zerar dores, náuseas, tonturas, falta de ar e perda de apetite. E também no suporte a pacientes e familiares para que consigam tomar as melhores decisões.

O mapa do Brasil

O próximo Atlas da ANCP sairá este mês de 2023, mas a reportagem de VivaBem já teve acesso a alguns dados:

  • O Brasil está prestes a atingir 250 serviços de cuidados paliativos; houve um crescimento de 25% do ano passado para este.
  • Ainda assim, é apenas cerca de 10% da necessidade para toda a população. Embora o brasileiro ainda tenha pouco acesso à prática, é importante frisar que mais da metade das equipes está no SUS.
  • O maior crescimento de oferta de cuidados paliativos foi registrado no Nordeste.

João Batista Santos Garcia, vice-presidente da ANCP, o médico é um dos grandes responsáveis pela sedimentação da prática na região. Ele chefia o serviço de dor e cuidados paliativos do Hospital de Câncer do Maranhão e é professor-doutor associado da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) na mesma área.

Pioneiro no estado, ele aponta que, embora a densidade de serviços de cuidados paliativos na região seja menor do que no Sudeste, a prática já é obrigatória nas faculdades de medicina do Maranhão.

"O fato de nós termos os cuidados paliativos sendo ensinados há mais de cinco anos na UFMA fez a diferença no crescimento do número de serviços, no interesse das pessoas e de profissionais especializados em cuidados paliativos nos últimos anos. E é isso que a gente espera para o Brasil inteiro", projeta Garcia.