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Por que boato de que Messi é autista é desserviço para quem tem transtorno

Messi comemora gol marcado na partida entre Argentina e Croácia - Kai Pfaffenbach/Reuters
Messi comemora gol marcado na partida entre Argentina e Croácia Imagem: Kai Pfaffenbach/Reuters

Do VivaBem, em São Paulo

20/12/2022 17h40

Enquanto circula nas redes sociais o boato de que Messi seria autista, pessoas que têm o transtorno ou se dedicam a estudar a condição temem o que chamam de "romantização do autismo".

Publicações que associam o desempenho do craque da seleção argentina à ideia de que ele seria um "gênio autista" se multiplicaram nos últimos dias. "Autistas fazendo coisas extraordinárias", escreveu uma usuária do Twitter, citando a vitória do jogador na Copa do Mundo 2022. "Messi, nosso gênio autista", disse outro perfil na mesma rede social.

O argentino, contudo, jamais declarou ser autista —a fake news já foi desmentida pelo UOL. "O maior problema disso tudo é que muitas pessoas celebram Messi, enquanto atleta incrível, pois seria autista", criticou o psicopedagogo Lucelmo Lacerda, em uma publicação em seu perfil no Instagram, onde acumula mais de 100 mil seguidores.

O especialista em educação inclusiva, e que é autista, enfatizou no post que, além de a informação ser falsa, é errado "romantizar e justificar o autismo como sendo composto somente por gênios".

Ao VivaBem, Lacerda comentou que esse estereótipo pode acabar tendo um impacto negativo em como a sociedade entende o que é o autismo, transtorno caracterizado por uma alteração no desenvolvimento cerebral que pode causar dificuldades na comunicação social e comportamentos repetitivos.

O estereótipo de que autistas seriam gênios gera a impressão de que pessoas com autismo não precisam de políticas públicas, porque o transtorno é visto como uma coisa maravilhosa, afinal, são gênios, não precisam de apoio em termos de tratamento ou inclusão escolar. Mas, na verdade, é o contrário, porque indivíduos autistas, por definição, precisam de algum nível de suporte. Lucelmo Lacerda, psicopedagogo e pesquisador sobre autismo

Autistas são mais 'geniais' do que não autistas?

  • O autismo é classificado como nível 1, 2 ou 3 ("leve, moderado ou grave"), conforme a necessidade de suporte;
  • No autismo nível 1, a eficiência intelectual é preservada. Problemas na fala ou comportamento agressivo normalmente também não estão presentes. O nível de autonomia é mais fácil de ser alcançado;
  • É comum pessoas pensarem que todo o indivíduo com autismo leve tenha uma inteligência acima da média. Alguns têm habilidades intelectuais que, de fato, chamam a atenção.
  • É o chamado quadro de Síndrome de Savant, que consiste no desenvolvimento de uma habilidade específica muito acima da média, geralmente relacionada ao cálculo, à memorização, à aptidão para música e a artes em geral. No entanto, ele só ocorre em aproximadamente 10% das pessoas com o espectro;
  • Esse brilhantismo não quer dizer que eles não tenham dificuldades na interação social, ou que não precisem de uma rotina conhecida e estruturada para se sentirem bem e seguros.

Já nos casos de autismo nível 2, a capacidade intelectual pode ficar abaixo da média e o transtorno pode ser acompanhado de comportamentos disruptivos, comorbidades e uma dificuldade maior de se adaptar às situações.

A situação é diferente de quem tem autismo nível 3, cujas características são a dependência total, deficiência intelectual, agressividade e baixo nível de funcionalidade, além de mais comorbidades.

O psicopedagogo Lucelmo Lacerda tem autismo nível 1 e é pesquisador do transtorno - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O psicopedagogo Lucelmo Lacerda tem autismo nível 1 e é pesquisador do transtorno
Imagem: Arquivo pessoal

Como estereótipo pode afetar autistas e pais de crianças com o transtorno

Uma das primeiras perguntas que o psicopedagogo Lucelmo Lacerda ouve das pessoas quando revela que seu filho também é autista é "qual é a super-habilidade dele?", conta o pesquisador.

Para Lacerda, além de ignorar as diferentes manifestações do autismo, a falsa ideia de que autistas são "gênios" pode ser prejudicial tanto para pais de crianças que têm o transtorno quanto para os próprios autistas. "Essa ideia cria a expectativa de que tudo depende da força de vontade do indivíduo ou das habilidades parentais dos cuidadores, quando na verdade as bases genéticas individuais do autismo são milhares e diferentes", analisa.

Lacerda cita um exemplo pessoal. Enquanto o seu caso de autismo, classificado como nível 1, é causado pela alteração em um único gene, seu filho, de 14 anos, apresenta alterações em dois genes e é autista nível 3 de suporte. "Tenho um quadro muito leve, já meu filho tem quadro muito mais severo, ele não fala e não entende falas complexas", diz.

Indivíduos autistas têm condições muito distintas. Portanto, quem conhece uma pessoa com autismo só conhece uma pessoa com autismo, ela não pode apontar aquela pessoa ou os ganhos que ela teve como referência para ninguém, porque cada indivíduo vai ter um percurso que depende de diversos fatores, incluindo o diagnóstico precoce e a variabilidade genética.

Autismo não é uma coisa só

tiago - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O jornalista Tiago Abreu tem autismo nível 1 e comanda um podcast sobre o transtorno
Imagem: Arquivo pessoal

O jornalista Tiago Abreu, 26, também foi diagnosticado com autismo nível 1. Ele conta que a maior dificuldade que o transtorno causa em seu cotidiano é a baixa energia social para lidar com os compromissos diários. "Sempre preciso fazer adaptações na rotina e ter períodos de isolamento para dar conta de todas as coisas", diz ele, que recentemente finalizou o mestrado na UFG (Universidade Federal de Goiás).

Abreu, que comanda o podcast sobre autismo "Introvertendo", considera que o boato ligando Messi ao autismo não é um caso isolado no que diz respeito à falsa ideia de que autistas teriam, necessariamente, habilidades acima da média. "No meio cultural, desde 'Rain Main', de 1988, muitas produções sobre autismo no cinema reforçaram esse estereótipo", cita o jornalista, em referência ao personagem de Dustin Hoffman (Raymond), que tem síndrome de Savant.

Existem disputas de significado dentro da própria comunidade do autismo. Se o filho tem muita dependência, as famílias vão dizer 'o autismo é uma tragédia, destruiu minha vida'. Já se a criança está na parte do espectro que tem algumas habilidades, aí as pessoas vão querer falar que mostrar realidades ruins sobre o autismo prejudica a imagem do autismo. O desafio é olhar para todas essas realidades, e não apenas uma.

Para Abreu, é "assustador" ver como algumas pessoas parecem querer acreditar que Messi é autista, mesmo sabendo que a história é falsa.

O psicopedagogo Lacerda pensa que "não há a necessidade de atribuir o autismo a uma pessoa que não tem a condição". Para ele, faz mais sentido celebrar as habilidades de personalidades que confirmaram ter o transtorno, como a ativista ambiental Greta Thunberg ou o bilionário sul-africano Elon Musk.

Como surgiu a fake news de que Messi seria autista?

  • Surgiu em 2013, depois que o escritor e jornalista Roberto Amado publicou um texto enumerando características que "provariam" que o craque é autista;
  • Ele citou a timidez ao interagir com a imprensa e o uso de dribles parecidos, o que seriam indícios de padrões repetidos --uma das características de quem tem autismo;
  • O médico Diego Schwartzstein, que cuidou do craque durante a infância e a adolescência, classificou, em entrevista ao UOL, o assunto como "bobagem";
  • O transtorno só pode ser diagnosticado por médicos, incluindo psiquiatras e neurologistas, e é feito com base em diversos fatores, como indicadores genéticos, dados do neurodesenvolvimento, comportamento e o funcionamento das habilidades sociais, emocionais e cognitivas;
  • Depois de ser diagnosticado, o paciente é encaminhado para profissionais que poderão ajudá-lo a trabalhar melhor as limitações que o transtorno pode causar, o que pode incluir psicólogos e fonoaudiólogos, por exemplo. Quanto antes o diagnóstico ocorrer e a pessoa receber o tratamento, melhor.