Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Morte em sessão de ayahuasca reacende debate sobre cuidados com psicodélico

Micael - Reprodução/Instagram
Micael Imagem: Reprodução/Instagram

Carlos Minuano

Colaboração para o VivaBem

05/09/2022 04h00

"O fato de alguém ter morrido sob o efeito da ayahuasca não indica que houve uma relação de causa e efeito entre as duas coisas", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Ele se refere à morte de Micael Amorim Macedo, 26, durante uma experiência com a bebida psicodélica em uma chácara na zona rural de São Sebastião, no Distrito Federal, no dia 24 de julho.

O caso veio à tona há poucos dias, após postagens da companheira dele, Jaynah Christine, 29, cobrando explicações sobre as causas da morte, que ocorreu há um mês e ainda não foi esclarecida. A ocorrência está sendo investigada pela Polícia Civil do DF.

Nas redes, Jaynah informa que Micael tomou três doses de ayahuasca e teve um surto psicótico. Para tentar controlar a situação, os responsáveis pela sessão teriam, segundo ela, aplicado seguidas doses de rapé no rapaz, que em seguida desmaiou e morreu. A suspeita é de que tenha sofrido uma parada cardiorrespiratória.

Jaynah conversou com a reportagem do VivaBem e disse que Micael havia consumido bebida alcoólica durante a semana da sessão e que, além disso, não apresentava estabilidade emocional naqueles dias. "Recomendei que fizesse terapia, ele teve uma crise de pânico no último mês."

O casal estava juntando dinheiro para consultas, porque queriam investigar as possibilidades de ele ter transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, TDAH, diz Jaynah. "Tinha muitos sintomas, especialmente ansiedade e dificuldade para finalizar tarefas, absorver conteúdos, isso estava minando a autoconfiança dele."

Para ela, o primeiro erro do grupo foi permitir a participação de Micael na cerimônia, mesmo tendo conhecimento de que ele estava debilitado psicologicamente. Especialistas concordam.

"Se uma pessoa está passando por algum sofrimento psíquico agudo deve evitar beber ayahuasca", orienta o médico psiquiatra Wilson Gonzaga, que possui décadas de experiência com a bebida psicoativa.

Uma sessão de ayahuasca pode fazer emergir uma quantidade tão elevada de material que, ao invés de ajudar, pode perturbar ainda mais a estabilidade emocional da pessoa, explica o médico.

A morte de Micael reverberou nas redes, gerando discussões sobre o uso da ayahuasca. Afinal, quais são os riscos? Quem pode usar? Como deve ser administrada? A reportagem ouviu médicos e especialistas com vasto conhecimento sobre o tema. Um consenso entre eles é que o acesso à bebida está cada vez mais fácil e perigoso.

Medicamentos, transtornos mentais, problemas no coração: há contraindicações

Antes de se aventurar em uma sessão de ayahuasca é importante saber que se trata de uma bebida que contém substâncias psicoativas. A principal delas é a DMT (dimetiltriptamina), um psicodélico poderoso que atua no cérebro ligando-se a receptores de serotonina (responsável pelo bem-estar e outras funções) e causando alterações profundas na percepção.

Por isso, a primeira recomendação do médico Dartiu Xavier é não associar o uso de ayahuasca com remédios que aumentem os níveis de serotonina, como alguns antidepressivos (a fluoxetina, por exemplo).

Micael tinha passado por uma cirurgia no coração ainda na infância, sua companheira afirma desconhecer que ele tivesse algum problema cardíaco. Entretanto, o fato levantou dúvidas se doenças cardiovasculares seriam também um impeditivo para beber ayahuasca.

Xavier observa que isso demanda exames mais profundos, mas não descarta que em alguns casos possa ser uma contraindicação. "Dependendo da patologia e das medicações que o indivíduo esteja tomando, o consumo de ayahuasca deve ser evitado.

Casos mais severos de transtornos mentais também demandam cuidado redobrado, complementa o psiquiatra Wilson Gonzaga. "Os quadros graves de depressão ou ansiedade não devem ser tratados com ayahuasca porque podem agudizar o problema."

Mas o médico observa que isso não significa que a ayahuasca não traga benefícios para a saúde. "Há muitos relatos demonstrando o poder de cura dessa substância", diz. Segundo Gonzaga, há evidências clínicas de que os efeitos são muito semelhantes aos dos antidepressivos. Por isso, não deve ser usada junto com esses medicamentos, para se evitar uma crise serotoninérgica.

Jaynah e Micael  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Micael e Jaynah
Imagem: Arquivo pessoal

"Surto é uma emergência"

A expansão do consumo da ayahuasca nos centros urbanos é um fenômeno que vem ocorrendo há algumas décadas. Para especialistas, há um pacote de problemas que vêm junto com essa onda. O principal deles é o modo descuidado como algumas pessoas estão utilizando a bebida, seja oferecendo seja participando de trabalhos.

"Está havendo um crescimento indiscriminado, exagerado, multifacetado que nem sempre tem uma estrutura de acolhimento e de cuidados que se deve ter ao trabalhar com uma bebida tão potente como essa", avalia Gonzaga.

O médico destaca o número de grupos, que está crescendo muito, entrevistas malfeitas com quem vai beber ayahuasca, pessoas bebendo sozinhas sem experiência e se submetendo a situações perigosas.

Casos de surtos psicóticos não são comuns em sessões de ayahuasca, mas ocorrem. E, segundo Gonzaga, acontecem porque geralmente estavam só esperando uma oportunidade para eclodir. "Qualquer tempestade emocional poderia desencadeá-los", explica Gonzaga. Mas quando isso ocorre é preciso agir rápido e da maneira correta. Trocando em miúdos, nada de aplicar rapé.

"A primeira coisa a fazer é entrar em contato com a família, interromper o uso da ayahuasca e procurar um auxílio profissional", prossegue o médico. "Tem emergência e urgência, surto é uma emergência, ou seja, socorro imediato."

Por causa dos intensos efeitos psicológicos da ayahuasca, especialistas afirmam ser importante escolher bem onde vivenciar uma experiência com a bebida psicodélica. "As sensações causadas pelo uso da bebida e a reação de cada pessoa a elas não podem ser previstas", observa o médico Romeu Fadul Jr., diretor científico da Biocase Brasil, que se prepara para iniciar estudos clínicos com psicodélicos.

"Alguns sentem muito medo, ansiedade, paranoia e a experiência pode trazer à tona alguns traumas do passado", diz Fadul. Ele ressalta que a experiência pode ser assustadora, principalmente se for realizada sem o acompanhamento de pessoas treinadas e preparadas para auxiliar quem consome a bebida.

Pode comprar na internet?

Tem pessoas comprando ayahuasca na internet, usando em raves, mas tudo isso, além de não recomendado, é proibido. Só o uso ritualístico da ayahuasca é permitido no Brasil, por uma resolução de 2010 do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas).

E isso não ocorreu da noite para o dia. É resultado de uma análise que durou vários anos, e que teve a participação de um grupo multidisciplinar, formado por médicos, juristas, agentes do Estado, lideranças religiosas, antropólogos e outros especialistas, conforme detalha o pesquisador Glauber Loures de Assis, doutor em sociologia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

"O estado brasileiro reconhece que o uso ritualístico da ayahuasca é uma prática legítima, que não leva a qualquer tipo de prejuízo social conhecido, e que deve ser protegido enquanto liberdade de crença prevista na Constituição Federal", informa Assis.

Mas o pesquisador avisa que a mesma resolução também indica qual é a forma segura e correta de administrar a bebida em contexto religioso. "É importante sublinhar que o comércio da bebida e a atividade terapêutica sem respaldo de pesquisas científicas estão entre os usos da ayahuasca considerados inadequados."

A onda do rapé

O uso de rapés virou moda no circuito brasileiro de ayahuasca e até fora dele. O problema é que o consumo que vem sendo feito está bem longe de ser seguro. Há quem utilize até em baladas. A venda corre livremente pela internet, dos mais variados tipos e com procedência duvidosa.

"O rapé faz parte da tradição de diversos povos originários, e tem origem ancestral", comenta o sociólogo Glauber Assis. Mas ele considera preocupante a proliferação muito grande do uso urbano associado à ayahuasca e outras substâncias.

"Há diferentes tipos de rapé e maneiras diversas de prepará-lo, mas nem todas as pessoas que administram a substância nas cidades têm o preparo necessário para fazê-lo", alerta Assis.

Ele aponta que é importante saber a procedência do rapé que será utilizado antes de receber uma aplicação. "Existe muita gente séria nesse meio, mas também há gente despreparada metida a xamã fazendo rapé no fundo do quintal com receitas que diferem totalmente dos tradicionais indígenas, e isso é preocupante."

Para o médico Dartiu Xavier, o rapé é muito mais preocupante do que a ayahuasca e adverte que a substância não deve ser usada recreativamente. "Seu uso pode desencadear uma crise de ansiedade e, em pessoas com predisposição, há até o risco de um surto psicótico, elevação da pressão arterial e intensificação dos batimentos cardíacos, aumentando o risco de problemas cardiovasculares", diz.