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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Como aproximar emocionalmente irmãos de pais diferentes?

Ulisses e Léo - Arquivo pessoal
Ulisses e Léo Imagem: Arquivo pessoal

Marcelo Testoni

Colaboração para o VivaBem

03/06/2022 04h00

Em 1942, ainda recém-nascido, Ulisses Zoneti, 80, acabou sendo entregue para adoção por sua própria mãe. Ela não tinha condições de criá-lo após ficar viúva com mais cinco filhos e ter sido desamparada pelo pai de Ulisses, de quem engravidou e para o qual trabalhava como empregada. Ulisses, que passou a vida inteira à procura da família biológica, só foi descobrir seu paradeiro em fevereiro deste ano, após um sobrinho-neto localizá-lo depois de uma longa investigação.

Leonidia Rodrigues, 97, irmã primogênita de Ulisses, ao saber que ele estava vivo, quis logo o encontrar e se aproximar emocionalmente. Mas como construir uma relação entre entes tão próximos que nunca se viram antes? E quando uma das partes não quer se envolver, ou está indecisa? Num primeiro contato, vale falar somente de coisas boas, ou de mágoas também? Momentos assim permitem a presença de mais pessoas, familiares, ou devem ser particulares?

No caso de Ulisses e Léo, como sempre preferiu ser chamada, suas filhas e netos promoveram o encontro, que ocorreu na cidade e na casa dela com um café da manhã, contou com a presença dos membros mais próximos e teve direito à conversa entre os dois irmãos a portas fechadas. Depois desse dia, Ulisses, que estava mais cauteloso, se aproximou de Léo, que passou a telefonar para ele todos os dias e os dois iniciaram uma amizade.

É necessário começar devagar

De acordo com Rafael Oliveira, médico pela UCB (Universidade Católica de Brasília) e psiquiatra e professor no Instituto Ipemed, da Afya Educacional, é fundamental que cada um saiba o que esperar da relação, o primeiro passo para evitar frustrações. "Compreender que não será fácil, que é preciso tempo para haver amadurecimento. Possibilitar o convívio com almoços, passeios, interesses em comum pode ajudar nessa integração, é um bom começo".

Ulisses e Léo se encontraram num café na casa dela - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ulisses e Léo se encontraram num café na casa dela
Imagem: Arquivo pessoal

Em conversas com Léo, Ulisses, que mora no litoral, passou a convidar a irmã e os sobrinhos para visitá-lo, passarem um dia juntos na praia, para que pudessem se conhecer mais, aprofundar-se nas dificuldades do passado e compartilhar preferências e histórias de infância e juventude. A construção da relação, continua o psiquiatra, deve ser como qualquer outra, basear-se no que o outro tem a dizer, está disposto a fazer e com abertura às suas diferenças.

Oliveira continua que é preciso se guiar pela honestidade, falar de intenções, expectativas para o futuro e que se houver pessoas capazes de contribuir e incentivar esse vínculo fraterno, que sejam convidadas a participar da aproximação. Porém, é preciso que os irmãos se sintam confortáveis e sejam consultados, pois há quem prefira um momento mais a sós, à vontade, sem que os outros fiquem analisando, aguardando por alguma reação, ouvindo as intimidades.

Não se obriga ninguém a nada

Durante esse processo também é importante que os irmãos respeitem o espaço um do outro. Que não se forcem, por exemplo, a falar o que ainda não queiram, além de abraços, beijos. "Sem pressão. Se o outro não quer tanta aproximação após um primeiro contato, ou precisa refletir, isso deve ser respeitado. Não é porque se pertence à mesma família que deve ser obrigado", aponta Eduardo Perin, psiquiatra pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Não é exagero afirmar que paciência e respeito equivalem a demonstrações de consideração e até amor por um irmão que esteja afastado emocionalmente. Para que os dois se entendam, devem ainda se perguntar mutuamente se podem discutir sobre todo e qualquer tipo de assunto, se reagem mal quando questionados sobre algum tema, se estão bem de saúde, principalmente quando compartilham um passado difícil, possuem traumas e ressentimentos.

Num primeiro momento, é aconselhado falar sem entrar em tantas particularidades e não esperar que o outro fale de tudo, acrescenta Perin. Léo e Ulisses, por exemplo, encontraram um meio-termo entre suas demandas emocionais. Abordaram a questão da separação familiar, mas optaram depois por focar em coisas boas que pudessem os unir. Mas não é regra e se houver angústia, algo que incomoda bastante, que seja colocado para fora, mas com cuidado.

Irmãos de pais diferentes Ulisses e Léo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Irmãos de pais diferentes, Ulisses e Léo se reencontraram 80 anos depois
Imagem: Arquivo pessoal

No caso de crianças, pais têm papel fundamental

Psiquiatra pelo HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Luiz Scocca afirma que quando os irmãos são crianças, cabe aos pais e a seus padrastos e madrastas promoverem a aproximação e o amadurecimento emocional entre eles. "Podem promover brincadeiras, atividades lúdicas que os façam interagir, mas sem insistência. Assim, coletam informações sobre diferenças, semelhanças, para desenvolver a convivência", diz.

Outra especialista, Leide Batista, psicóloga pela Faculdade Castro Alves, em Salvador (BA), acrescenta que, durante desentendimentos, os pais sejam imparciais, promovam negociações e não julguem ou façam comparações entre os irmãos, apontando defeitos e qualidades. "Que tenham uma postura responsável, de empatia. Também que imponham limites, obrigações iguais entre os filhos, sem favorecer um ou outro, e isso não apenas vale para famílias mistas."

Léo infelizmente não cresceu junto de Ulisses, mas, por ter filhas de pais diferentes, aprendeu com os desafios que enfrentou com elas, dentro do próprio lar, a importância de tudo o que apontaram os entrevistados. Ela morreu enquanto esta reportagem era finalizada, três meses após conhecer seu único irmão ainda vivo. Ulisses afirma que apesar do pouco tempo juntos, tirou um peso do peito, pois sabe que ela o amou muito e agora está acolhido por sua família.