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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Coração, rim: que partes de animais podem ser usadas para tratar humanos?

Paulo Whitaker/Reuters
Imagem: Paulo Whitaker/Reuters

Marcelo Testoni

Colaboração para VivaBem

07/04/2022 04h00

Em janeiro de 2022, foi anunciado um feito revolucionário na medicina: um norte-americano de 57 anos se tornou a primeira pessoa no planeta a receber um transplante de coração de porco modificado, feito por médicos da Universidade de Medicina de Maryland, nos EUA. Mesmo que logo após dois meses ele tenha morrido, a equipe responsável pela cirurgia mantém o otimismo sobre o êxito desse procedimento no futuro.

Pouco mais de um ano antes, uma equipe da Universidade de Nova York (EUA) transplantou com sucesso um rim suíno em outro humano. Até então só as válvulas cardíacas eram utilizadas.

No Brasil, onde a fila de espera por um órgão ultrapassa 50 mil pacientes, pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) estão conduzindo estudos em transplantes entre duas espécies diferentes (xenotransplantes) para também usar rins de suínos. Embora esses animais sejam diferentes de nós em aspectos imunológicos, por isso seus genes exigem ser editados em laboratório antes de nascer, possuem uma fisiologia parecida.

Mas bem antes desses tipos de transplante, outros animais vêm sendo aproveitados em prol da saúde humana. Para além de porcos, bois, cavalos, carneiros, peixes e até insetos. No Egito Antigo, por exemplo, grandes formigas e escaravelhos eram colocados em feridas para que suas mandíbulas, parecidas com tesouras, ao se fecharem unissem as bordas de lesões. Seus corpos então eram torcidos, arrancados, deixando apenas suas cabeças firmemente presas.

Porco, porcos, criação pecuária, suínos - Davy3 Photo/iStock - Davy3 Photo/iStock
Imagem: Davy3 Photo/iStock

Intestino e anticorpos de herbívoros

Médico e filósofo da Antiguidade, Galeno de Pérgamo deixou registrado em seus escritos científicos que tratou tendões rompidos de gladiadores romanos com suturas, utilizando fios de seda (fabricados do casulo da lagarta de diversas mariposas) e tiras de serosa de intestino (uma membrana responsável por revestir alças intestinais), de animais herbívoros. Se até então o desfecho era a paralisia, graças a essas suturas tinham uma chance de recuperação.

"Há relatos da utilização de vários materiais como fios de suturas a partir de 30 d.C., tais como tendões, intestinos de vários animais, crina de cavalo, fio do pelo da extremidade da cauda de bovinos e cabelo de camelo. O homem sentiu a necessidade de fechar de alguma forma os ferimentos para acelerar a cicatrização e promover maior conforto", afirma Luciano Schneider, veterinário pela UFG (Universidade Federal de Goiás) e autor de um estudo sobre suturas.

Desde o século 19, se popularizaram então fios de sutura esterilizados obtidos de intestinos de bois e ovelhas denominados "categute". Nessa época igualmente passaram a ser utilizados em humanos anticorpos de cavalos, dos quais são produzidos mais de dez tipos de soro, contra doenças e venenos.

De bovinos, mais especificamente vacas transgênicas, atualmente também estão em teste seus anticorpos contra a covid-19 e que poderiam ser injetados em nós.

Troca de pele, até com peixe

Em se tratando de enxertos, já foram testados os de macacos, sem sucesso; porcos, cuja pele tem 78% de semelhança com a humana, mas por conta da rejeição do nosso organismo só serve para enxertos temporários ou para a fabricação de uma pele artificial obtida com base na derme suína passada por purificação e preenchida com colágeno de boi; além de pele de tilápia, que é aplicada sobre queimaduras graves para diminuir dor e acelerar cicatrização.

Pele de tilápia aplicada sobre queimadura para diminuir dor e acelerar cicatrização - Divulgação - Divulgação
Pele de tilápia aplicada sobre queimadura para diminuir dor e acelerar cicatrização
Imagem: Divulgação

"A pele de tilápia elimina ou reduz custos e drasticamente as trocas dolorosas e diárias de curativos do tratamento usual, com pomadas, que requer muitos profissionais, pois impõe banhos anestésicos", explica Edmar Maciel, cirurgião plástico, presidente do Instituto de Apoio ao Queimado e coordenador de uma pesquisa iniciada em 2015 pela UFC (Universidade Federal do Ceará) que já ajudou centenas de queimados tratados no Instituto Dr. José Frota.

Limpa e tratada, a pele do peixe não só reduz em 50% os custos de tratamento ambulatorial e o sofrimento dos pacientes, já que, na maioria das vezes, permanece na ferida até a completa cicatrização, como tem sido empregada para outros fins.

Em 2019, após iniciados estudos na área de ginecologia, foi utilizada na construção e reconstrução do canal vaginal, em mulheres que nasceram sem ele, tiveram câncer ou após passarem por redesignação sexual. Ainda é testada como válvula cardíaca e para procedimentos de revascularização e hérnia abdominal.

Futuro pró humanidade

No que compete ao uso de órgãos geneticamente modificados de suínos para transplantes, os médicos estão otimistas. A esperança é de que dentro de uma década, mais órgãos, incluindo outros —pulmão e fígado—, possam ser usados em humanos que precisam de doadores.

Na Alemanha, corações suínos serão testados este ano em babuínos pela Universidade Ludwig-Maximilians, em Munique, que pretende então partir para os humanos em dois ou três anos.

Leva certo tempo, pois, segundo João Vicente da Silveira, cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, toda técnica de transplantes de órgãos é muito complicada: "Devido aos riscos de rejeição, sangramentos, infecção e microtromboses. O processo inflamatório se inicia com a infiltração de linfócitos (células de defesa do corpo) nos órgãos transplantados e com isso há o reconhecimento das células novas como antígenos (moléculas estranhas)".

Silveira acrescenta que, além dos porcos —e apesar de debates acalorados e um movimento forte pelos direitos dos animais—, há estudos em andamento também com outros mamíferos. Nem seus parasitas escapam.

Larvas de mosca criadas por cientistas, como os da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), têm sido aplicadas para "limpar" e curar úlceras em humanos, às vezes com mais eficácia que a de remédios e sem efeitos colaterais.

Larvas de mosca criadas por cientistas - Divulgação/HUOL/UFRN - Divulgação/HUOL/UFRN
Tratamento pioneiro no Brasil, profissionais e pesquisadores do HUOL/UFRN estão utilizando larvas de moscas em pacientes como terapia em ferimentos de difícil cicatrização
Imagem: Divulgação/HUOL/UFRN