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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Projeto cria modelo de autocuidado da comunidade a doentes graves no Rio

Integrantes do projeto visitam casas nas comunidades da Rocinha (foto) e Vidigal - Arquivo Pessoal
Integrantes do projeto visitam casas nas comunidades da Rocinha (foto) e Vidigal Imagem: Arquivo Pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para VivaBem

02/02/2022 04h00

Um modelo de assistência e cuidado a pessoas com doenças graves está mudando —para melhor— a vida delas nas favelas do Vidigal e da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se da comunidade compassiva, um projeto de extensão da UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei), em MG, e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O projeto começou em julho de 2018 incentivando pessoas da comunidade a cuidarem daquelas que moram ao seu lado e têm doenças que ameaçam a vida. Para isso, um modelo de atenção à saúde foi criado e disseminado nas comunidades.

Foi o enfermeiro Alexandre Silva, professor da UFSJ e pesquisador voluntário do Grupo de Estudo e Pesquisa em Cuidados Paliativos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) quem idealizou o projeto. "Sempre gostei muito de cuidar das pessoas em fase avançada de doença que ameaça a vida. E, historicamente, a favela tem dificuldade no acesso a serviços de saúde", diz.

Ele conta que durante seu período de doutorado percebeu como as pessoas adoecem e morrem na favela. "Comecei isso no Vidigal antes do doutorado, passei três anos pesquisando por lá. Não deixava o paciente na mão após as visitas: sempre ligava para saber se estava precisando de fralda ou de uma consulta, por exemplo, diante de tamanho sofrimento observado", diz.

Alexandre Silva durante visita à Rocinha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Alexandre Silva durante visita à Rocinha
Imagem: Arquivo pessoal

A ideia inicial dele era "trazer ciência para dentro da caridade". Foi durante essa aproximação com a comunidade que ele pensou em um modelo de autocuidado da comunidade para ajudar pessoas, por exemplo, em fase terminal de vida. "Eu entendo que o morador faz parte do Estado. Também é obrigação da gente cuidar dos nossos, não é só dever governamental", relata.

O projeto começou a ganhar corpo quando ele estava terminando o doutorado, em 2018, e foi chamado para ver pacientes com doenças graves na comunidade da Rocinha. "Um amigo meu, que faz trabalhos com idosos, me apresentou a Edileuza [que era conselheira distrital à época] e mais três pessoas que faziam trabalho de caridade lá. A Edileuza que começou a chamar as pessoas e começou a cuidar delas, e assim começou o projeto: um grupo de voluntários locais, que são os padrinhos e madrinhas dos pacientes. Essas pessoas são a engrenagem do projeto", explica.

Essas pessoas foram capacitadas e, como voluntárias, aceitaram a missão de cuidar de algum morador local com doença grave e ameaçadora da vida.

Falamos aqui de pessoas doentes em condição ameaçadora da vida. Não é um projeto para ajudar quem precisa de um oftalmologista, de um aparelho de audição. Estamos falando de doentes graves, acamados, em uma condição que possa levar à morte. Alexandre Silva, criador do projeto

Hoje, participam do projeto 31 pessoas na Rocinha e nove no Vidigal. "Em 2021, acolhemos 54 pessoas, a grande maioria em fase final de vida", diz.

Já o grupo gestor é composto por mais três pessoas: as enfermeiras e professoras da UFRJ Liana Amorim Corrêa Trotte e Maria Gefé da Rosa Mesquita; e a médica Lívia Pereira Coelho.

Além disso, o projeto Saúde.contato, que tem objetivo de cuidar do cuidador, também é parceiro e desenvolve trabalhos tanto com os voluntários locais quanto com os cuidadores familiares dos pacientes.

Vários tipos de ajuda

Ao contrário de muitos projetos sociais na favela, esse não visa atender pessoas somente com atendimento de saúde ou doações de dinheiro e donativos. "A comunidade compassiva busca dar atenção a esse sofrimento físico, mas também psíquico, social e espiritual de pessoas comunidades, conhecendo as suas demandas", diz Alexandre Silva.

Esse projeto é uma busca de dignidade às pessoas que estão no fim da vida. Às vezes isso passa também pelo material, como dar comida e remédio que precisa. Quando começamos achamos situações deploráveis, pessoas morando ao lado de ratos, baratas. São muitos casos. Tinha uma senhora que fazia sopa com água, sal e papelão. Alexandre Silva

Além disso, profissionais de saúde —que moram ou não na comunidade— formam um grupo especializado para atender e selecionar os pacientes que farão parte do projeto. Para isso, um mutirão é realizado uma vez por mês, quando esses profissionais vão às casas das pessoas atendê-las.

Equipe fazendo atendimentos durante mutirão na Rocinha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Equipe fazendo atendimentos durante mutirão na Rocinha
Imagem: Arquivo pessoal

"São os voluntários que indicam essas pessoas. Uma vez por mês a gente vai ver se ela tem perfil e entra —ou não— no projeto. Essa equipe é composta por enfermeiro, médico, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, educador físico, terapeuta ocupacional, psicólogo etc", relata.

Para apoiar o projeto não precisa ser necessariamente da comunidade. Há também um terceiro eixo: doadores que ajudam essas pessoas em condição de vulnerabilidade social.

"A comunidade compassiva não recebe dinheiro diretamente. Quem assume dar uma ajuda vira madrinha/padrinho de fora. Para isso tem a moradora que é madrinha local, que faz o contato direto. Por exemplo: ela viu que a pessoa precisa de alguma coisa, aí ela nos avisa, pegamos a conta do padrinho ou madrinha, e a pessoa deposita direto para ela. Ela então faz as compras, pega as notas e eu envio para quem doou", explica.

Ajuda pelo SUS e das pessoas

Maria Edileusa Braga Freires é conselheira e voluntária do projeto. Foi ela quem reuniu as primeiras pessoas da Rocinha para serem madrinhas e padrinhos.

Ela conta que historicamente a comunidade tem dificuldade com a oferta de serviços de saúde —e que ela sempre lutou para intervir. "Quando tem algo difícil de resolver em relação às unidades de saúde, por exemplo, eu —como representante do povo no SUS— vou até a coordenação e agilizo os encaminhamentos de cirurgias ou alguma demanda, como as visitas dos agentes de saúde às famílias. Entro nessa parte como fiscalizadora do SUS", diz.

Hoje, ela está na presidência do Conselho Distrital de Saúde da comunidade e é uma das pessoas que ajuda na coordenação do projeto. Ela conta que, durante sua rotina de trabalho, viu muitas situações dramáticas. "Só as clínicas aqui da Rocinha não dariam conta, e o projeto veio nos ajudar", relata.

Sobre a dinâmica local, ela cita que padrinhos e madrinhas ficam sempre atentos ao que o paciente está precisando.

Esse é o trabalho: saber se o paciente precisa de alguma medicação para acionar a clínica. Se não tem o remédio, têm pessoas que doam e levamos àquele paciente. Se precisa de fralda, a madrinha leva. Maria Edileusa Braga Freires, conselheira de saúde

Equipe da comunidade compassiva - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Equipe da comunidade compassiva
Imagem: Arquivo pessoal

A quantidade de visitas varia conforme a especificidade do paciente. "Pode ser uma vez por semana, duas, depende. Tem paciente que precisa receber duas vezes, outros não. O importante é que nunca deixamos o paciente sem assistência", conclui.

Por fim, Alexandre Silva ressalta que o modelo pode ser copiado e replicado por todo o país. "A força motora dele é a compaixão."