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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Frio na barriga, gelar espinha: a importância de traduzir o que sentimos

Expressões ajudam na compreensão do que estamos sentindo - iStock
Expressões ajudam na compreensão do que estamos sentindo Imagem: iStock

Flávia Santucci

Colaboração para o VivaBem

15/12/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Toda emoção tem um componente fisiológico que ajuda na hora de explicarmos o que estamos sentindo
  • Recorrer a expressões para indicar sensações ruins é mais comum porque é mais difícil explicar esse tipo de sentimento
  • Fazer associações é natural e intuitivo a qualquer ser humano em qualquer lugar do mundo

Muitas vezes, fazemos uso de expressões que parecem traduzir exatamente o que estamos sentindo, mas isso não quer dizer que o corpo esteja realmente passando por aquilo que estamos tentando dizer. O frio na barriga ou o gelar a espinha não significam que algo gelado está passando pelo nosso estômago ou nossa coluna vertebral, mas acontece, sim, algo dentro do nosso corpo que nos ajuda a expressar o que estamos vivenciando naquele momento.

Para Arthur Guerra, psiquiatra do Hospital Sírio-Libanês, essa é a maior prova de que corpo e mente estão extremamente conectados. "Estas expressões, muito utilizadas no senso comum, são uma ótima forma de se desafiar um velho dogma que ainda persiste atualmente: a ideia de que corpo e mente são coisas completamente separadas. Mas o fato é que estão extremamente conectados. É possível dizer que são a mesma coisa, ou então dois modos de encarar o mesmo problema".

É claro que sentimos um "aperto no coração" e sentimos "gelar a espinha", muito embora, em termos estritamente físicos, isso não esteja, de fato, acontecendo. Isso ocorre porque nossos sentimentos produzem e orquestram muitas coisas no corpo inteiro, produzindo as mais diversas sensações e percepções. E essas sensações acabam recebendo um tratamento inventivo na forma como são descritas pelo jargão popular.

Neurologista do Hospital Santa Paula, Anderson Machado Benassi explica que o que acontece é que o organismo aprende e gera memórias a partir das sensações de dor, tristeza e alegria, por exemplo, e acaba reproduzindo-as em momentos futuros.

Segundo ele, o sistema nervoso central é o grande responsável pelo controle das regulações básicas do organismo como a temperatura, a pressão arterial, a frequência cardíaca e a ereção de pelos. Ao passarmos por uma experiência de vida, nosso cérebro sinaliza para nosso organismo algumas respostas fisiológicas, como o aumento da frequência cardíaca. "Algumas pessoas podem descrever essas alterações fisiológicas como 'gelar a espinha', 'aperto no coração' e 'peso na cabeça'".

De acordo com o psicólogo João Paulo Machado de Sousa, professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da FMRP/USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), toda emoção tem um componente fisiológico e isso acaba ajudando na hora de explicarmos o que estamos sentindo.

"Emoções liberam hormônios e neurotransmissores que mudam o funcionamento do nosso corpo. Aperto no coração, de fato acontece porque eu tenho essa resposta de ansiedade, por exemplo. Tenho uma resposta fisiológica tão grande, que sinto meu coração, de fato, se contraindo. Existe a contração de vasos, uma mudança significativa na respiração. A sensação de aperto no coração não é só uma criação mental, é uma sensação física que está ligada à ativação do corpo causada pela emoção".

Mulher com refluxo, azia, queimação, dor no peito, ansiedade, estresse - iStock - iStock
Expressões que definem emoções são prova de que corpo e mente estão extremamente conectados
Imagem: iStock

Doutora em linguística pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Vivian Rio Stella explica que, na maioria das vezes, essas expressões são utilizadas para atenuar o sentimento em questão. "Pode ser uma intenção de não nomear o sentimento de uma forma, mas se valer de uma metáfora, uma expressão idiomática metafórica para fazer isso".

Na linguística, Stella destaca, essas expressões são chamadas de idiomáticas e ajudam na compreensão do que estamos sentindo. "A gente consegue a eficácia na comunicação porque ela é facilmente compreendida e está enraizada na cultura. Quando a gente está no contexto e usa as expressões, acaba sendo efetivo na comunicação".

Capacidade criativa para expressar os sentimentos

Recorrer a essas expressões para indicar sensações ruins, como angústia, nervosismo e tristeza, é mais comum porque é mais difícil explicar esse tipo de sentimento, conforme conta Benassi. "Sensações prazerosas, além de serem mais facilmente identificadas, muitas vezes são mais simples".

As sensações negativas costumam ser mais complexas. "Um paciente com dor de cabeça pode referir dor tipo pulsátil, em aperto, em agulhada, em queimação ou choque. Felizmente essa complexidade de características nos auxilia na propedêutica clínica e no raciocínio diagnóstico", diz ele. Outro motivo é que nós, seres humanos, tendemos a evitar as situações de desconforto. Dessa forma, ao não termos o hábito de vivenciar e de detalhar esses sentimentos, podemos, em algum momento da vida, ter dificuldade em descrevê-los.

Para Sousa, emoções negativas tendem a dominar e se apresentar no corpo com mais intensidade, pois têm maior valor adaptativo. "Todas as emoções causam reações corporais. Mas se estou me sentindo feliz, não preciso de uma reação muito intensa, porque posso ficar naquele estado, não preciso sair. Às vezes, dizer que está triste ou nervoso não é suficiente para expressar o que está acontecendo, por isso a gente busca expressões".

É aí que entra a inventividade e nossa capacidade criativa para descrever sensações e sentimentos. "Estamos sempre inovando, ousando, criando e isto ocorre naturalmente. Nós modificamos o mundo e também modificamos nossa relação simbólica com ele por meio da linguagem. Muitas vezes, não basta dizer 'estou feliz'. Vem uma certa necessidade de dizer 'estou feliz pra cachorro' e isso não precisa ser justificado no nosso cotidiano", diz Guerra.

Segundo ele, existe um acordo social intuitivo que viabiliza estas expressões que, em seu sentido literal, são um contrassenso. Do mesmo modo, quando alguém descreve que está com um grande "aperto no coração", a sugestão seria que esta pessoa procurasse ajuda de um psiquiatra ou psicólogo, e não do cardiologista. "Nós somos extremamente inventivos com nossa linguagem e nossa capacidade de fazer associações é ímpar. É natural e intuitivo que façamos comparações", diz.