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'Fungos Fantásticos': psicodélicos estão por trás da evolução humana?

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Imagem: iStock

Carlos Minuano

Colaboração para o VivaBem

16/11/2021 04h00

Drogas alucinógenas podem ter exercido um papel fundamental na evolução humana? É o que diz uma hipótese conhecida por aqui como "teoria do macaco chapado" (ou, em inglês, stoned ape theory). Ela defende que o consumo da psilocibina, substância presente nos chamados cogumelos mágicos, teria sido responsável por uma aceleração do desenvolvimento cerebral do hominídeo primitivo.

Segundo a teoria —que não tem nenhuma comprovação e é muito difícil de ser testada—, nossos ancestrais pré-históricos consumiram alucinógenos e a ingestão dessas substâncias, que alteram a consciência, explicaria um intrigante salto evolutivo da espécie humana. Além de um suposto aumento do cérebro, a teoria defende que experiências psicodélicas estariam por trás da criação da linguagem, dos primeiros rituais tribais e até do surgimento das religiões primitivas.

A ideia foi apresentada pela primeira vez na década de 1960, pelo psicofarmacologista Roland Fischer, e nas décadas seguintes foi popularizada pelo etnobotânico Terence McKenna em livros como "O Alimento dos Deuses" e "O Retorno à Cultura Arcaica" (editora Record). Recentemente, a hipótese voltou a aparecer no documentário "Fungos Fantásticos" ("Fantastic Fungi", disponível na Netflix).

No filme, o psiquiatra Charles Grob, da Universidade da Califórnia (EUA), observa que a antiga e complexa relação de muitas culturas indígenas com a medicina vegetal é um indício de que, embora possa parecer um tanto alucinada, a teoria faz sentido. "É totalmente plausível, tendo em conta que os povos indígenas de todo o mundo conhecem intimamente as plantas e diferentes combinações entre elas, que nossos ancestrais pré-históricos tenham encontrado cogumelos que alteram a consciência", acredita Grob.

Difícil de ser testada, mas intrigante

A hipótese do "macaco chapado" é difícil de ser testada, mas é intrigante, comenta o neurocientista Stevens Rehen, professor do Instituto de Biologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio do Janeiro) e pesquisador do Instituto D'Or. "Nos faz pensar sobre diversos aspectos da evolução."

"Talvez a ativação dos receptores de serotonina e de outros neurotransmissores por psicodélicos em algum período específico da história de nossos ancestrais tenha interferido na qualidade da neuroplasticidade, levando a melhores respostas adaptativas", observa Rehen.

Neuroplasticidade ou plasticidade neuronal é a habilidade que o sistema nervoso tem de aprender e se reprogramar. De acordo com o pesquisador, isso envolve fenômenos que ocorrem em todas as escalas biológicas, desde a regulação da expressão gênica até a reorganização de circuitos cerebrais inteiros.

"Da mesma forma, uma possível socialização estimulada pelo consumo coletivo de cogumelos [psicodélicos] poderia também ter contribuído na expansão das capacidades cognitivas dos grupos [de ancestrais pré-históricos], o que poderia trazer vantagens à época", complementa o neurocientista.

Pesquisa com minicérebros

Nos últimos anos houve muitos avanços nas tecnologias usadas para estudar os psicodélicos, mas para validar a hipótese do "macaco chapado" seria necessário planejar experimentos específicos, observa o neurocientista Stevens Rehen. Uma maneira de fazer isso seria acompanhando o efeito transgeracional da exposição aos psicodélicos em modelos animais, explica o pesquisador.

Há tempos o neurocientista se dedica a investigar as substâncias psicodélicas com a ajuda de minicérebros humanos e células cerebrais —organóides cultivados em laboratório a partir de células-tronco que reproduzem o cérebro em desenvolvimento.

Seus estudos indicam que os psicodélicos são capazes de modular centenas de proteínas que controlam alguns dos aspectos mais básicos da neurobiologia. Mas ainda não servem para avaliar a hipótese de McKenna. "Quem sabe quando mais linhagens de células reprogramadas contendo genes de hominídeos estiverem disponíveis", prevê Rehen.

Crescimento do cérebro

No documentário "Fungos Fantásticos", o irmão de Terrence, o cientista Dennis McKenna, questiona como o cérebro humano triplicou de tamanho em apenas dois milhões de anos. Para ele, a resposta para as profundas mudanças cerebrais está no consumo de psicodélicos pelos primatas. "Funcionou como um software para programar um hardware neurologicamente moderno", explica McKenna no filme.

Porém, no caso da alteração morfológica em um espaço de tempo relativamente curto não há razão para espanto, avalia o embriologista Eduardo Sequerra, professor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). "Isso acontece o tempo todo na evolução."

"Temos formas estáveis durante centenas de milhares a milhões de anos que são substituídas por novas formas que também se estabilizam", prossegue o professor. O que pode acontecer, segundo ele, é de uma linhagem acumular alterações genéticas e essa variação permanecer como um potencial até que algum gatilho, genético ou ambiental o dispare. "O crescimento do cérebro pode ter passado por algo assim", sugere Sequerra.

De acordo com o professor da UFRN, após muitas gerações recebendo o gatilho ambiental (talvez estimulado por cogumelos psicodélicos) a linhagem incorporou esse caminho de desenvolvimento e passou a expressá-lo de forma independente.

"É possível testar a teoria"

Algumas abordagens na psicologia também podem reforçar a teoria proposta por Mckenna, propõe o biomédico Renato Filev, que em 2022 irá coordenar uma pesquisa com psilocibina na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Filev cita a capacidade dos cogumelos mágicos de auxiliar no manejo do sofrimento psíquico e de outras condições de saúde e lembra que estudos em diferentes áreas da ciência estão comprovando também outras potencialidades.

"Pesquisas em neurociência mostram que o uso de doses moderadas de psicodélicos, como a psilocibina, são capazes de aumentar as conexões da rede neural em tese facilitando a interação social, cognição e a cooperação intraespécie", diz Filev.

Dennis Mckenna, no filme "Fungos Fantásticos", comenta outra função dos psicodélicos, a de induzir a sinestesia, algo como ouvir as cores e ver os sons, que estaria, de acordo com a teoria, relacionada à criação da linguagem.

Mais uma vez, seria preciso testar essa hipótese, afirma Stevens Rehen. "E há algumas formas de fazê-lo", garante o neurocientista. "Será que animais, como camundongos ou pássaros, passariam a ampliar sua capacidade de comunicação social se expostos a psicodélicos ao longo de gerações?"

Conexões neuronais

A hipótese do "macaco chapado" também apareceu recentemente em algumas páginas do livro "Como Mudar Sua Mente", do jornalista Michael Pollan (editora Intrínseca), obra mais celebrada da atual fase de retomada das pesquisas com alucinógenos, chamada de renascença psicodélica.

Quase todas as citações estão relacionadas ao micologista Paul Stamets —personagem central do filme "Fungos Fantásticos" —, atualmente um dos mais fervorosos defensores dos cogumelos psicodélicos.

Pollan destaca por exemplo um e-mail que recebeu de Stamets no qual o micologista fala sobre "a grande probabilidade" de que seja verdadeira a teoria do "macaco chapado". Segundo ele, após a ingestão de psilocibina, o cérebro do hominídeo se tornou capaz de pensamentos analíticos.

Estudos mais recentes mostram que sob o efeito de psilocibina há uma ampliação do número de conexões neuronais entre áreas do cérebro que normalmente se conectam. Em um estado ordinário de consciência essas ligações ocorrem de maneira bem mais reduzida.

"Isso dá margem a várias especulações", afirma o neurocientista Dráulio de Araújo, da UFRN. Uma delas é de que os psicodélicos fariam o cérebro trabalhar de uma forma mais livre, gerando experiências que não poderiam ocorrer na vida corriqueira, assemelhando-se portanto ao de uma criança em sua fase mais criativa.

"É controverso, fenomenologicamente, pode até ser, mas do ponto de vista do cérebro, não há ainda dados que levem a crer que isso é razoável", diz Araújo.