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Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Síndrome de Peter Pan, do impostor: rótulos também impactam saúde mental

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Imagem: Thinkstock

Dan Novachi

Colaboração para o VivaBem

01/12/2020 04h00

Resumo da notícia

  • A popularização das síndromes pode ter diferentes consequências, dependendo de como o discurso foi utilizado
  • Elas podem fornecer novas pistas para nomear formas de sofrimento humano e gerar autoconhecimento
  • Mas também podem reforçar estereótipos e limitar as diferentes percepções das realidades singulares de cada indivíduo
  • Entender suas próprias percepções com maior profundidade é mais adequado do que adotar classificações generalizantes
  • O uso generalizado desses termos pode ser positivo para iniciar o debate, mas deve ser aprofundado com ajuda profissional

Todos os dias nos deparamos com novos nomes para alguns tipos de comportamentos: síndrome da boazinha, de Peter Pan, do patinho feio, do impostor. Essas diferentes nomeações organizam algumas experiências em um padrão único para definir pessoas e situações. Enquanto alguns chegam a ser reconhecidos como compulsões ou distúrbios comportamentais, a diz respeito a termos que ganham espaço nos meios de comunicação e no imaginário popular, ajudando a criar novos estereótipos.

Os efeitos da popularização desses termos dependem muito da maneira como essas informações serão utilizadas, de acordo com Ana Paula Justo, mestra e doutora em psicologia pela PUC-Campinas (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) e docente do curso de psicologia no Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo).

A professora afirma ser possível usar esses conceitos com o objetivo de se autoavaliar e, a partir disso, buscar informações mais científicas ou, até mesmo, profissionais para auxiliar com algum padrão de comportamento que cause sofrimento. Da mesma maneira, um uso superficial desses termos poderia levar ao efeito contrário e tornar as pessoas que se identificam com eles mais resistentes, afastando-as da busca por um possível tratamento.

"Rotular cria estigmas, reduz a complexidade dos fenômenos humanos a um grupo de sintomas ou comportamentos, não contextualiza esses fenômenos, não favorece o autoconhecimento", diz. Segundo ela, a compreensão popular e/ou individual sobre esses rótulos pode ser muito diversificada e impulsionar mudanças radicais, sem uma análise adequada e pautada em conhecimento científico, o que pode trazer prejuízos. "Elas podem impulsionar alguém a sucumbir a essa classificação, achando que nada pode ser feito a respeito, causando uma certa estagnação".

Para a psicóloga, a experiência humana é extremamente complexa e o autoconhecimento requer um investimento pessoal para além de simples generalizações. Um rótulo para um grupo de sintomas sempre limitará a compreensão do ser humano de forma integral, ainda que possa alertar sobre algo que não anda bem.

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Imagem: iStock

Experiências diferentes, comportamentos semelhantes

De acordo com Maria Homem, psicanalista, mestre em psicanálise pela Universidade de Paris VIII e professora da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), esse movimento de buscar dar nomes a alguns bois pode ser interessante, na medida em que estamos mais atentos às vivências subjetivas.

"Podemos pensar que os comportamentos humanos e mesmo o universo subjetivo por trás deles são absolutamente singulares e bem mais complexos que uma síndrome qualquer". A psicanálise, em alguma medida, segundo ela, trabalha a especificidade de cada ser falante e sua história de vida, seus sonhos e desejos, é a única maneira de desenhar uma travessia do que faz sofrer: debruçando-se sobre o que há de específico em cada um. Saber que cada um tem essas vivências próprias, portanto, ajudaria a não colocar todos em um mesmo padrão de comportamento.

"O que é prejudicial ou funcional pode depender do contexto que o indivíduo vive ou frequenta", diz Paula Studart, psicóloga clínica, doutoranda e mestra em medicina e saúde pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Ela cita como exemplo o caso de uma pessoa que tem um comportamento de ofertar ajuda aos outros, de doação intensa, e deixa de lado seus interesses por si, a famosa síndrome da boazinha.

Esse comportamento pode ser extremamente funcional dentro de grupos sociais como igrejas ou associações beneficentes, por exemplo. No entanto, se a pessoa tem dificuldade de dizer "não" em outros contextos, como em uma relação com seu parceiro, na área acadêmica ou grupo de amigos, isso pode gerar prejuízos para sua vida.

"Trabalhar essas distorções cognitivas pode ajudar os indivíduos a apresentarem uma visão mais realista e ampla sobre si mesmos e os outros. De fato, é válido examinar esses pensamentos, reunindo as evidências contrárias que mostram o lado saudável e funcional desses indivíduos", orienta Studart.

Como identificar se um comportamento é ou não saudável?

De acordo com Christian Dunker, psicanalista, professor do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), dois sintomas clássicos podem ser observados para sabermos que determinado comportamento não é saudável: a coerção mental a si mesmo, que frequentemente assume a forma do "eu tenho que", e a alegação de incapacidade para realizar algumas atividades sociais comuns, assumindo a forma do "eu não consigo" ou "eu não posso com".

Dunker explica que no primeiro caso, a coercitividade, apesar de um sintoma bastante objetivo, é difícil de se identificar, uma vez que é uma obrigação que o indivíduo coloca a si mesmo e pode ser direcionada a funções comuns do dia a dia. Ele cita como exemplo clássico a figura dos acumuladores, que decidem acumular determinados objetos e a situação só parece se tornar crítica quando assume algo fora do controle.

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"Isso pode acontecer com comportamentos completamente adaptativos, como trabalhar. O indivíduo se sente coagido de que tem que trabalhar, que não pode não trabalhar. Todos os dias, inclusive no sábado e domingo. E é possível que alguém olhe e diga: poxa, que cara legal, trabalhador! Mas não, isso é uma patologia, isso é um sintoma", diz. Só que a pessoa não percebe isso, ela acha que ela está cumprindo aquilo que é esperado para todo mundo. "É esperado para todo fazer determinada coisa, como trabalhar, mas não daquela maneira".

O outro sintoma, de incapacidade, é como uma pessoa que tem medo de elevadores. Ela pode criar um "senso comum" de que não precisa usar esses equipamentos, que pode usar a escada, morar e trabalhar em locais onde não tenham elevadores. Mas é uma patologia do mesmo jeito. "Não é porque você contornou ela na sua vida, que ela deixou de ser patológica", diz Dunker.

Termos da moda e atraso no debate de saúde mental

Há cerca de 50 anos, os estudiosos da psiquiatria intensificaram a classificação de transtornos mentais, utilizando uma estratégia convencionalista. Em vez de buscar as causas dos sintomas, eles os agrupavam em determinados nomes e designavam tratamentos a eles. Desse movimento surgiram termos e designações. Ainda assim, diante dessa imensidão, existe uma outra necessidade latente: a de nomear sintomas, sentimentos e sensações para torná-los mais palpáveis.

"A gente só consegue olhar para o nosso sofrimento e entender que ele é legítimo e relevante se ele tiver um nome", diz Dunker. Segundo ele, o sofrimento deve se descrever em um discurso que o legitima como digno de atenção, tratamento, encaminhamento, administração, cuidado. "A hora que a gente encontra um nome, que às vezes é um nome fantasia, mas a gente compreende, é uma maneira de dizer que existe um problema. São pequenas e grandes dinâmicas que precisam de um nome para poder gerar uma experiência de conhecimento mais coletiva".

Homem também diz que não estamos mais tão presos a hipóteses metafísicas ou míticas, que buscavam ver o mal ou o demônio como os responsáveis por desencadearem transtornos de saúde mental. Ela explica que que a entrada na modernidade parece fornecer outras ferramentas para lidarmos com o fato de sermos sujeitos. Talvez esses termos indiquem caminhos para lidarmos com isso.