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"Adoece para você ver", diz enfermeira que foi demitida após ter covid-19

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Priscila Carvalho

Do VivaBem, em São Paulo

07/05/2020 11h00

Uma enfermeira, que prefere não se identificar, foi contaminada pela covid-19 enquanto trabalhava na linha de frente de um hospital público em São Paulo. Ela ficou afastada por quase uma semana, mas ao voltar, foi dispensada da função. No relato abaixo ela conta como sobreviveu e afirma que os profissionais de saúde, principalmente os enfermeiros, não são valorizados no mercado de trabalho.

"Eu atuava como enfermeira assistencial em um hospital da capital paulista e dava treinamentos de covid-19. Quando o 'boom' dos primeiros casos começou, a minha função era ensinar os demais enfermeiros e técnicos a fazerem a coleta. O ritmo era intenso e tinha semana que fazia até sete coletas todos os dias.

Por mais que nós sejamos treinados para fazer isso, dá um medo muito grande de pegar a doença, já que não sabemos o que vem pela frente. A gente fica muito exposto, quase que o tempo todo, e como eu estava trabalhando diretamente com a covid-19 era ainda mais arriscado.

No dia 17 de abril, comecei a sentir alguns sintomas. Eram dor de garganta leve, espirro e comecei a medicação por conta própria. Fiquei uma semana fazendo isso, mas a tosse foi aumentando e, cinco dias depois, comecei a ter disfunção intestinal. No dia 25 de abril, a dor no corpo estava intensa, chegava a vir para o pulmão e o tórax sempre que eu respirava. A fadiga também apareceu e ficou quase impossível seguir uma rotina normal, no entanto, continuava trabalhando.

Eu pensei que podia ser uma gripe forte e até dengue, mas resolvi ir ao médico, já que os sintomas só pioravam. No hospital, fiz um raio-X que identificou a infiltração bilateral no pulmão. O médico pediu uma tomografia de urgência e como dependo do SUS, fiquei cerca de oito horas para fazer o procedimento. Fiz todos os exames e constataram que eu estava sim com covid-19.

Para me recuperar, o médico me deu seis dias de atestado. Conversei com a minha chefia sobre o ocorrido e falaram para eu ficar tranquila. O ideal seria que eu ficasse cerca de 14 dias até que eu me recuperasse totalmente, mas como estava no período de experiência e com muito trabalho para fazer, pensei em voltar antes.

Os sintomas não passavam e a falta de ar só aumentava. Como moro só com a minha filha, pedi que alguns amigos cuidassem dela e me isolei em casa. Às vezes, no meio da noite, a falta de ar era tão grande que eu pensei várias vezes que ia morrer. Cheguei a falar para um amigo, que também trabalha na área da saúde, para fazer massagem cardíaca se eu tivesse uma parada respiratória e me levasse direto para o hospital.

A falta de ar estava insuportável e fui fazer um novo exame que constatou que meu pulmão ainda estava infiltrado. O médico me deu mais dois atestados, um de três dias e outro de sete, o que totalizou 14 dias.

Na última segunda-feira (4), voltei ao meu hospital e quando fui colocar o dedo no ponto eletrônico, não aparecia mensagem nenhuma, não passava e até brinquei comigo mesma que havia sido demitida. Mas não era brincadeira. Me chamaram na diretoria e falaram que eu estava dispensada.

teste covid-19 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Achei estranho sendo que nunca havia tido um feedback negativo e elogiavam sempre o meu desempenho. Foi eu me ausentar por cerca de oito dias e, quando eu volto, sou demitida. Me senti descartável, um lixo. Como muita gente fala, somos a linha de frente, mas isso funciona para quem? Adoece para você ver o que acontece.

Fiquei com muito medo de morrer e ainda contaminei minha filha

Nos primeiros dias em que fiquei com a minha filha, tentei ao máximo não ter contato com ela. Ela foi para o apartamento de um casal de amigos, mas mesmo assim ela também se contaminou. Nesse meio tempo, ela sempre me ligava chorando, fazia chamadas de vídeo e se mostrava muito preocupada. Somos só nós duas aqui em São Paulo, então, imagine se eu morresse.

Ela também fez o exame para covid-19 e deu positivo. Mesmo diante desse resultado, ela estava assintomática e bem.

Ainda estou no isolamento e recebo ajuda do meu amigo que traz algo para eu comer e poder cozinhar em casa.

Foi muito difícil esse processo, porque várias vezes eu achava que ia morrer dentro de casa e ainda mais sozinha. Muitos amigos da mesma idade ou com idades parecidas estão ficando doentes e morrendo, o que me deixava ainda mais apreensiva.

Pouco a pouco estou melhorando e não tenho mais dificuldade para respirar. Segui todas as orientações e tomei as medicações adequadas. Hoje, como ainda não há estudos e nem vacina para a doença, o meu maior medo é de ser contaminada novamente.

A profissão não é valorizada

Quando voltei ao trabalho sabia que ia encontrar um cenário bem ruim e chocante, mas jamais achei que ia ser dispensada. Por mais que eles falaram que não foi 100% pela doença, tudo indica que teve relação. Acho que o atestado médico foi um ponto primordial para o desligamento.

Estamos cada vez mais cansados, exaustos, na linha de frente mesmo, e o profissional não tem o mínimo de valorização. Não tem nada de humano, a desvalorização é nítida. A equipe teve um desfalque de mais de dez profissionais que foram afastados porque ficaram doentes e ninguém vai olhar pela gente?

Ainda não estou apta a trabalhar, mas preciso voltar em breve, pois tenho que sustentar minha filha e pagar contas. E sei que logo já vou conseguir um outro emprego, já que a demanda está alta.

Mas o mercado está cada vez pior, cruel com o profissional e ainda querem contratar com salários inferiores e até enfermeiros como voluntários. Me senti muito injustiçada e tratada com um certo desprezo. Você se sente um zero a esquerda e realmente não há valorização."