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Equilíbrio

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"Psicólogo disse que ex tinha razão em me trair": qual o limite na terapia?

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Imagem: iStock

Diego Garcia

Colaboração para o VivaBem

13/04/2020 04h00

Quando Joana* terminou um relacionamento longo de uma maneira abrupta e, para ela, indelicada resolveu procurar uma terapia para lidar melhor com a situação e com questões doloridas que o término deixou. Mas, para a sua surpresa, foi desrespeitada e saiu do consultório pior do que quando entrou. A história de Joana, não é incomum. Muitas pessoas passam por isso e, por não saber como lidar, abandonam a terapia ou por desconhecimento, acha que é o comportamento normal do terapeuta, mas não é.

Aproveitando a comodidade e praticidade de ter um psicoterapeuta na empresa, Joana conseguiu agendar uma consulta. Durante o seu relato de caso, em que seu relacionamento acabou por conta da traição do ex-namorado, ela diz que o terapeuta mudou a postura corporal e fez um comentário que não a agradou: "Como você não quer ser traída, se vestindo dessa maneira?", diz relembrando a fala do terapeuta.

Joana trajava calça e camisa sociais, porque trabalhava em um ambiente de fábrica e essencialmente masculino. Neste momento ela entendeu que o psicólogo não compreendeu as questões que ela compartilhava na terapia, confundindo de maneira muito clara as projeções e opiniões dele, com as condutas do dia a dia de trabalho dela e que não se refletem a outros momentos quando está fora do ambiente de trabalho.

Para Miguel Roberto Jorge, médico psiquiatra, psicoterapeuta, professor da EPM/Unifesp (Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo) e coordenador da Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade, um bom psicoterapeuta nunca deve basear suas intervenções em convicções pessoais. "O centro do atendimento deve sempre ser a o paciente e é função do psicoterapeuta apenas auxiliá-lo a entender seus comportamentos disfuncionais, para que esse paciente tenha condições de modificá-los", analisa.

O que fazer quando o psicoterapeuta passa dos limites?

Para Jorge, se um paciente se sentir constrangido por comentários que ele considere inoportunos ou mesmo meras opiniões pessoais do psicoterapeuta, ele deve procurar outro profissional. "Se o psicoterapeuta comente algum excesso, ofende o paciente, este pode até denunciá-lo por má prática no seu conselho de classe", completa. É o que fez Mariana Rossi, após uma consulta com uma psicóloga.

Mariana desenvolveu a síndrome de Burnout e foi buscar ajuda com uma psicoterapeuta que atendia pelo convênio médico da empresa em que trabalhava. Desde o início ela ficou desconfortável. Ao explicar o motivo que a tinha feito buscar aquela terapia, a psicóloga discordou, disse que ela estava lá por outro motivo. "Primeiro perguntou sobre a minha relação com a minha mãe, eu disse que éramos muito próximas. Depois, perguntou sobre o meu marido. Ao comentar sobre o nosso casamento, que é recente, me emocionei e comecei a chorar, e foi aí que ela começou a afirmar que meu problema era no meu casamento", descreve.

Mas não parou por aí. Mariana sentiu-se ofendida quando ao ser questionada sobre ter filhos, ela disse não ter planos para isso. A terapeuta então, disse a ela estava errada e que iria perder o marido por isso e várias outras coisas neste sentido que ela não gosta nem de relembrar. "Infelizmente não tive a reação mais adequada e acabei por levantar a voz para a profissional e abandonei a sessão. Me retirei do ambulatório bastante exaltada", conta. Somente depois de relatar o caso a outro profissional, que já a acompanhava, mas não era aceito pela empresa, é que Mariana resolveu fazer uma denúncia no CRP (Conselho Regional de Psicologia).

Míriam Cristiane Alves, conselheira presidente da Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS (Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul), explica que os CRPs possuem dispositivos de orientação, fiscalização e avaliação ética dos profissionais. Diante de qualquer situação de constrangimento que uma pessoa venha a vivenciar durante os atendimentos realizados por um profissional de psicologia, ela poderá acionar o CRP por meio de uma denúncia formal, com o intuito de que os fatos sejam averiguados pelo Conselho.

"É importante salientar que toda e qualquer questão produzida no processo psicoterápico, seja nele tratada e trabalhada. No entanto, a pessoa atendida precisará avaliar a dimensão do constrangimento, a possibilidade ou não de falar sobre o constrangimento na psicoterapia e, finalmente, tomar a decisão sobre a necessidade de uma denúncia formal sobre o ocorrido", conclui.

Caso o paciente se sinta muito agredido pelo profissional, ele pode buscar reparação judicial, afirma Vicente Cassepp-Borges, psicólogo e Professor Adjunto na UFF (Universidade Federal Fluminense).

Relações terapêuticas adoecidas

"Na prática da escuta clínica o ato de ouvir aposta na existência de que tem algo para ser ouvido, oferecendo ao outro a possibilidade de falar, de se expressar. Na nossa profissão, a estratégia para evitar o atravessamento das questões pessoais do psicoterapeuta em uma relação de escuta clínica está no "tripé" estudo teórico, psicoterapia pessoal e supervisão", explica Alves.

Ela complementa que esses elementos são fundamentais para as boas práticas da psicoterapia porque deixam suspensos os sentimentos morais do profissional.

Para a psicóloga, a escuta da moral, julgadora do bem ou mal, do feio ou bonito, prazer ou desprazer, repulsivo ou atrativo, se torna de vital importância para que o psicoterapeuta escute seu pacientes de forma extra-moral, pois o reforço destes valores presentes tanto no paciente quanto do terapeuta acaba constituindo relações terapêuticas adoecidas.

Foi o que aconteceu na experiência de Joana. "Fiquei bastante ofendida com o comentário e consciente de que aquela conduta não parecia adequada para o profissional. Estava consciente, apesar do incomodo, de se tratar de um abuso", analisa. Ao longo das consultas, Joana percebeu uma dificuldade do profissional de acolher as questões que ela levava e trabalharem sobre elas.

"Tudo parecia girar em torno da opinião pessoal dele, de como os relacionamentos 'modernos' são assim mesmo, que relacionamentos em que os homens enganam as mulheres são o padrão e sobre como deveria ter fechado os olhos para isso, 'como todas sempre fazem'", complementa. Apesar de respeitar a opinião particular do profissional, ela pondera que este não é o ponto de vista dela sobre como seus relacionamentos deveriam ser conduzidos e nem de uma dúvida que ela teria na época. "O que achei particularmente perigoso e inconsequente no comentário dele foi como isto poderia ter sido potencialmente (ainda mais) danoso em um momento de tanta dor", completa.

Limite profissional deve ser rígido

Luana Vieira coleciona pelo menos dois casos em que psicoterapeutas cometeram abusos. Após diversas crises de ansiedade e pânico, problemas no casamento e ausências no trabalho, ela foi aconselhada a procurar ajuda profissional. Na primeira consulta a psicoterapeuta perguntou o que ela gostava de fazer nas horas vagas e se ela praticava algum esporte. Ao responder que gostava de assistir séries televisivas e que não fazia nenhum esporte, a terapeuta disparou: "você está acima do peso. Se só ficar vendo TV sem fazer mais nada da vida, vai ficar depressiva mesmo". Mesmo alegando que a vida dela não se resumia a assistir televisão, a profissional indicou a ela que procurasse um médico psiquiatra.

Quando buscou outra profissional, que achou por meio da internet, após ouvir o relato de Luana, a psicoterapeuta que tem formação em psicologia, questionou qual era a religião dela. Ao ouvir de Luana que, apesar de cristã, não tinha religião, a terapeuta afirmou que o problema dela era falta de Deus. A consulta acabou aí. Apesar de ter encontrado dois bons profissionais depois desses episódios, ela optou por não fazer mais terapia. "Na hora fiquei muito brava, depois me senti péssima, pois fui buscar ajuda e só encontrei críticas e descaso", relata.

Borges defende que o psicoterapeuta tem que ser rígido nos limites profissionais e pessoais. Para ele, é impossível desassociar os valores pessoais com os do paciente, "mas deve fazer todo e qualquer esforço para minimizar que suas crenças e valores pessoais passem para quem atendemos", diz. Ele complementa que quando está em terapia o psicoterapeuta é um representante de uma ciência e por isso tem que tomar o máximo de cuidado para separar os valores dele com os do paciente.
Como reconhecer quando o terapeuta extrapola o profissional?

Segundo Jorge, quando um psicoterapeuta diz ao seu paciente "faça isto" ou "faça aquilo", ou seja, dá diretivas ao paciente de como ele deve se comportar, ele está dando opiniões em vez de, como deveria fazer, auxiliar o paciente a identificar o que seria melhor ter feito. Alves complementa a fala do médico dizendo que o paciente e o próprio terapeuta precisam estar atentos, pois o profissional dirige o tratamento e não a vida do paciente.

"Ele pode apontar comportamentos disfuncionais do paciente ao identificar aqueles que causam problemas ao paciente em suas relações ou mesmo importante sofrimento emocional. Mas, não cabe ao terapeuta dizer ao paciente o que ele deveria fazer e sim estimulá-lo a pensar que comportamentos alternativos ele poderia ter tido diante de situações específicas", explica Jorge.

De acordo com a psicóloga, o sentimento, a percepção do paciente pode ser um sinal, entretanto, muitas vezes o mal-estar pode ser produzido por várias razões, e pode ser parte do processo terapêutico da/do paciente e não por um excesso do psicoterapeuta. "O que se pode adiantar em relação a tais práticas inadequadas é que, por muitas vezes, elas perpetuam um sintoma social, pois a/o psicólogo é parte estruturante da rede social em que vive. Nesse sentido, não é raro psicólogas/os perpetuando enunciados racistas, homofóbicos, sexistas identificados com os lugares de privilégio que ocupam no seu território social. Pensamos que a categoria ainda tem muito a caminhar nesse sentido", analisa.

Como encontrar um bom psicoterapeuta?

Não existe a profissão de psicoterapeuta regulamentada no Brasil, ou seja, não existe um conselho de classe de psicoterapeutas pautado por um código de ética de psicoterapeutas. Usualmente os profissionais que atuam como psicoterapeutas são psicólogos e médicos psiquiatras —ou seja, você pode recorrer ao CRP e ao CRM respectivamente —, mas há outros profissionais em menor número atuando como psicoterapeutas.

Por isso, as dicas dos especialistas são:

  • Confira a formação do terapeuta, se for médico ou psicólogo, verifique se estão com seus registros ativos em seus respectivos conselhos;
  • Contate um profissional que seja indicado por algum conhecido ou paciente deste profissional; tenha uma conversa prévia antes da consulta, pois muitas vezes em um primeiro contato o paciente pode sentir ou perceber se fica à vontade ou não com o terapeuta e ter uma primeira impressão positiva ou negativa;
  • Procure um psicoterapeuta que tenha mais especificidade com o seu problema, por exemplo, psicoterapeuta especializado em relações amorosas ou trabalhistas, familiares, etc;
  • - Fuja de profissionais que fazem promoções e propagandas "milagrosas" de remissão de sintomas ou problemas que não têm relação direta com a prática psicoterápica, tais como problemas com a nutrição, com a justiça ou lesões que são específicas de outras áreas, e de promoções financeiras ou pacotes financeiros para atrair pacientes.

*Nome modificado a pedido da personagem