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Mariana Varella

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Doença não é castigo e todos devem ter acesso a um atendimento digno

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/11/2021 04h00

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Quando nos deparamos com a morte de alguém, é comum indagarmos: "Morreu de quê?". Longe de ser apenas curiosidade, a pergunta esconde uma inquietação existencial: ninguém quer morrer, por isso buscamos constantemente nos assegurar de que o fim está distante.

"Morreu porque fumava"; "Ah, ele não se cuidava, não fazia exercícios"; "Ficou muito doente porque não fez exame de rastreamento e já descobriu o câncer avançado"; e "Quem mandou transar sem camisinha?" são frases que jogam a responsabilidade da doença no paciente, mas também trazem alívio momentâneo para quem está bem de saúde e deseja ter o mínimo de semelhança possível com quem está gravemente doente ou tenha morrido.

Pensar que estamos imunes a doenças e, no limite, à morte torna a vida mais suportável. Ninguém quer lembrar que somos todos mortais, que a vida não tem compromisso com a justiça e que não há sentido na existência, a não ser aquele que atribuímos a ela, pois pensar nisso o tempo todo tornaria a vida intolerável.

Além disso, cada ser humano tem um conjunto de valores, crenças e critérios, incluindo preconceitos, que utiliza para julgar o que é certo e errado. Para uns, é compreensível que uma pessoa faça uso de substâncias como cigarro e álcool, para outras não. Algumas entendem que a correria do dia a dia pode nos impedir de ter uma vida mais regrada, que inclua uma alimentação saudável e a prática regular de exercícios físicos, outros acham que não há desculpa para não tornar os cuidados com a saúde prioridade.

Profissionais de saúde também cometem o mesmo julgamento dos reles mortais. São seres humanos, afinal. Assim, são frequentes as histórias de pacientes que se sentiram julgados em consultórios médicos. Essa conduta, contudo, apenas afasta os pacientes dos serviços de saúde. Ao culpabilizarmos as pessoas pelas próprias doenças, não nos damos conta da enorme injustiça que cometemos. Mais do que isso, não percebemos o quanto colaboramos para estigmatizar pessoas que, inúmeras vezes, já estão vulneráveis de muitas formas.

Não sabemos o que leva determinado indivíduo a ter feito as escolhas que fez. Não conhecemos sua vida, os percalços pelos quais passou, a qualidade da informação que recebeu. Aliás, sequer podemos atestar que aquela pessoa que está diante de nós de fato fez escolhas livres ou, ao contrário, foi levado a elas pelas circunstâncias da vida.

As escolhas variam, muitas vezes, de acordo com fatores socioeconômicos, educacionais, psicológicos, biológicos e culturais e também dependem do acesso a bons serviços de saúde. Parte considerável das nossas decisões não é baseada em critérios racionais, tampouco em evidências científicas.

Além disso, muito do que chamamos de escolha sequer poderia ser chamada assim. É possível dizer que uma pessoa escolhe fazer uso abusivo de álcool, por exemplo? Ou que alguém que contraiu sífilis realmente estava ciente dos riscos? E mesmo que tivesse, todo mundo pensa nisso antes de ter uma relação sexual?

Nossa moral também influencia políticas públicas. Portanto, as políticas de saúde devem considerar evidências científicas para que não corram o risco de serem determinadas por critérios morais. Não importa o que cada um ache sobre o cigarro, por exemplo, devemos tratar todos os que adoecem por doenças associadas ao tabagismo. Também é preciso considerar que as escolhas são influenciadas por muitos fatores, que informação apenas não basta e, com isso, investir em formas de prevenção diversificadas.

Por medo de julgamento, milhares de pessoas fogem dos serviços de saúde. São indivíduos que deixam de receber orientações que podem ajudar na prevenção de doenças, de fazer exames de rastreamento e de realizar tratamentos que podem evitar o agravamento de enfermidades.

O que lucramos com isso? Não sou paternalista, acredito que pessoas adultas devam ter autonomia para fazerem as próprias escolhas e responsabilidade para lidarem com suas consequências. Mas isso implica algumas condições prévias, como acesso à informação, aos meios para executarem as orientações, a condições socioeconômicas mínimas, à educação e saúde de qualidade.

Mesmo assim, é necessário assumir que parte da população não fará as melhores escolhas sempre, pois somos induzidos por fatores dos quais sequer nos damos conta. Doença não é castigo, e nossa Constituição considera a saúde um direito universal. Isso significa que todos devemos ter acesso a um atendimento de saúde digno, que considere nossas necessidades, independentemente dos motivos que nos levaram a procurá-lo. É preciso preparar os profissionais e serviços de saúde para que façam valer esse direito.